Judiciário e MP usam princípio da simetria entre as instituições para distorcer gratificação e aumentar salários

Estudo inédito do DadosJusBr, projeto da Transparência Brasil, revela como o abuso do princípio constitucional da simetria entre as carreiras do Judiciário e do Ministério Público (MP) originou a recente criação da licença compensatória, benefício que possibilita o aumento de até 1/3 na remuneração de magistrados. 

Os Conselhos Nacionais de ambas as instituições entendem que, segundo a Constituição, os benefícios concedidos a juízes também devem se aplicar a promotores, e vice-versa. A nova benesse é fruto de uma série de distorções da gratificação por exercício cumulativo fundamentadas nessa interpretação.

A gratificação foi criada por lei em 2015 para magistrados da Justiça Federal e do Trabalho que atuam em mais de um juízo ou são responsáveis por muitos processos. Quem estivesse nessas condições receberia um valor extra correspondente a um terço de seu salário, ao final do mês.

Na legislação que a criou, a gratificação é sujeita ao teto constitucional, ou seja: se o pagamento dela fizer com que o salário do magistrado fique acima do salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal (atualmente em R$ 41.650,92), um desconto será aplicado para que o valor a ser pago seja igual ou menor ao máximo permitido. 

Em 2022, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) recomendou que os MPs também criassem regras para pagar a gratificação por exercício cumulativo a promotores. Segundo o CNMP, o princípio da simetria de promotores e juízes justificaria a criação do novo benefício. A recomendação trazia, no entanto, uma diferença em relação à lei que criou a gratificação: excluía a obrigatoriedade de a verba estar sujeita ao limite constitucional de remuneração. 

Em janeiro de 2023, ao aplicar sua recomendação e estabelecer as regras para conceder a gratificação a membros do Ministério Público da União (MPU), o CNMP alterou a forma do benefício e o tirou do limite constitucional para salários de servidores públicos. 

O promotor que estiver com acúmulo de trabalho não recebe um terço de salário a mais ao final do mês, como os juízes. Ele pode escolher entre tirar um dia de folga para cada três trabalhados ou receber o dinheiro correspondente aos dias de folga. Caso opte pelo pagamento, essa verba não entra no cálculo de seu salário, ou seja, ele a recebe inteiramente, sem a imposição de descontos para ficar dentro do teto constitucional. Criou-se a licença compensatória.

Em outubro de 2023, o Conselho Nacional de Justiça entendeu que os magistrados estavam em desvantagem em relação aos promotores, com essa transformação da gratificação por acúmulo adotada pelo MPU. Para solucionar a falta da simetria, editou uma resolução estabelecendo que a gratificação por acúmulo a juízes também deve seguir o novo formato, ou seja, também deve poder ultrapassar o teto constitucional.

Três semanas depois, começou o efeito cascata: o Conselho da Justiça Federal e o Superior Tribunal de Justiça implementaram a licença compensatória e seus membros poderão ter seus contracheques aumentados em até um terço. 

Acesse o relatório na íntegra.

Pingue-pongue da simetria começa em 2011

Em 2011, o CNJ editou a Resolução nº 133 formalizando a interpretação de que, segundo a Constituição, os “direitos” de juízes e procuradores devem ser equivalentes. Desde então, quando uma verba é criada de um lado, o outro se vale do argumento da simetria para também regulamentá-la em sua instituição, sem passar pelo Legislativo ou alterando o que está em uma lei.

A Resolução CNJ 528, de outubro de 2023, apenas atualizou esse texto, incluindo nele a licença compensatória criada pelo CNMP.