Organizações solicitam que PRF derrube o sigilo de 100 anos imposto nos processos do caso Genivaldo

O Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas divulgou na última sexta-feira, 24.jun.2022, nota solicitando à Polícia Rodoviária Federal que derrube o sigilo de 100 anos imposto sobre os processos administrativos dos cinco agentes envolvidos no caso de Genivaldo de Jesus Santos. Genivaldo morreu no dia 25.mai.2022, vítima da abordagem violenta de policiais em Umbaúba, Sergipe, que o detiveram em uma “câmara de gás” no porta-malas da viatura da PRF. 

A nota das organizações – coalizão de que a Transparência Brasil faz parte –  evidencia que o órgão negou acesso aos processos administrativos dos policiais já encerrados, após solicitação feita por jornalistas. O sigilo imposto no caso está tecnicamente incorreto, e viola a Lei de Acesso à Informação, segundo o Fórum – que trabalha no controle social da implementação e aplicação da LAI.

Nota: Fórum solicita à PRF que derrube sigilo de 100 anos imposto em processos contra agentes envolvidos no caso Genivaldo

Após abordagem violenta de agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que resultou na morte de Genivaldo de Jesus Santos, em Umbaúba, Sergipe, a corporação impôs sigilo de 100 anos nos processos administrativos já concluídos relacionados aos cinco policiais que detiveram a vítima em uma “câmara de gás” improvisada no porta-malas de uma viatura. A decisão veio após pedido de acesso feito por jornalistas, sob a justificativa de que os documentos continham “informação pessoal”.

A negativa de fornecimento da informação está tecnicamente incorreta – pois contraria o art. 7º, § 3º da Lei de Acesso à Informação (LAI), que garante o acesso público a processos administrativos já encerrados, e qualifica como pessoais informações que não se relacionam à intimidade, vida privada, honra ou imagem. Tratam-se de documentos que contêm registros das ações de pessoas no exercício de suas funções públicas.

Acima disso, e principalmente, o sigilo imposto viola trecho da LAI que proíbe expressamente a negativa de acesso a informações necessárias à defesa de direitos fundamentais e a imposição de sigilo sobre informações e documentos relativos a violações de direitos humanos cometidas por agentes do Estado. Contraria, ainda, preceitos da Constituição e do direito internacional. Mesmo que os processos administrativos aos quais se negou acesso não se relacionem diretamente à violação cometida contra Genivaldo de Jesus, tratam-se de informações relevantes no contexto de apuração da referida violência e para a defesa dos direitos fundamentais à vida e à liberdade.

Considerando que as violações de direitos humanos pela polícia impactam mais a população negra, a negativa de acesso torna o genocídio dos corpos negros um segredo de Estado, o que configura uma política de acesso à informação racista.

Sendo assim, o Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas exige que o diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal Silvinei Vasques reverta a negativa de acesso e divulgue a quantidade, os números dos processos administrativos e a íntegra dos autos já concluídos envolvendo os agentes que provocaram a morte de Genivaldo de Jesus.

i. Violações de Direitos Humanos, racismo e acesso à informação 

A LAI é um instrumento legal de efetivação do direito humano de acesso às informações públicas. Ela surgiu no contexto em que a discussão sobre a apuração das violações de direitos humanos cometidas no período da ditadura militar estava em voga, por meio da criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV). A LAI e a lei 12578/2011 – que institui a CNV – foram sancionadas no mesmo dia e trazem dispositivos internos de efetivação de direitos humanos, como a garantia de acesso irrestrito à informação quando há ataques a estes direitos.

Nesse sentido, a LAI é categórica:

“Art. 21. Não poderá ser negado acesso à informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais.

Parágrafo único. As informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas não poderão ser objeto de restrição de acesso.

No que tange ao direito de acesso à informação, as violações de direitos humanos são revestidas de publicidade, uma vez que a apuração e responsabilização de tais atos são de relevante interesse público, balizada pela proteção dos direitos fundamentais. Negar o acesso às informações constitui óbice à imparcialidade das investigações e à correção dos abusos e ilegalidades cometidas por agentes públicos no exercício da atividade pública.

A letalidade policial tem como alvo primordial a população negra – em 2021, dos 2,7 mil mortos pelas polícias para os quais há a informação de raça, 2,2 mil (81,5%) eram pessoas negras. Como resultado, a imposição de sigilo sobre esses atos significa que informação de maior impacto para a população negra acaba tendo tratamento diferenciado em relação a informações de interesse da população branca, o que configura racismo.

Neste contexto, o assassinato de Genivaldo de Jesus por agentes da PRF explicita a faceta perversa do racismo estrutural no Brasil e o silenciamento das violações cometidas.

A LAI em, mais uma oportunidade, ressalta a preponderância da defesa dos direitos humanos nessas situações:

“Art. 31. O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais

§ 1º As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem:

II – poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem.

§ 3º O consentimento referido no inciso II do § 1º não será exigido quando as informações forem necessárias:

IV – à defesa de direitos humanos

V – à proteção do interesse público e geral preponderante.”

Igualmente, a necessidade de o Estado prestar informações sobre violação de direitos humanos perpetrada por agentes do próprio Estado já foi objeto de julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). No caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil, a Corte considerou o Estado brasileiro violador do direito a buscar e a receber informação, bem como do direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido. Igualmente, no caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, a Corte condenou o país, entre outros elementos, pela falha em investigar, determinar a verdade dos fatos, sancionar e reparar mortes causadas por operações policiais na Favela Nova Brasília, em 1994 e 1995.

Finalmente, para casos em que apenas parte da informação seja sigilosa, é resguardado o direito de acesso ao conteúdo que pode ser público, conforme o parágrafo 2º do artigo 7º da LAI. Isso faz com que o direito de acesso à informação não seja impactado pela presença de informações sigilosas ou pessoais de maneira pontual em um documento de alto interesse público.

ii. Acesso à Informação e Segurança Pública 

Os princípios de Tshwane, que regem as melhores práticas quanto a questões de acesso à informação e segurança, apontam caminhos muitos distintos daqueles tomados pela Polícia Rodoviária Federal ao tornar sigilosas informações sobre os agentes envolvidos na morte de Genivaldo de Jesus. Além de se tratar de uma grave violação de direitos humanos, a conduta adotada pelo órgão também contraria outros pontos elencados pelos princípios aqui mencionados. Importante destacar que o documento foi elaborado por órgãos que trabalham com direitos humanos e transparência, após avaliação e sopesamento, ou seja, aquilo que for apontado como possível de se disseminar, de fato não tem impacto negativo na condução de políticas de segurança na visão de especialistas.

No ponto 10 do documento, se levantam informações com elevado grau de presunção a favor da identificação, entre eles, aquelas que digam respeito a violações e que incluem em seu rol:

“(a) Uma descrição completa e todos os registros que mostrem os actos ou omissões que constituem as violações, bem como as datas e circunstâncias em que ocorreram, e, quando aplicável, a localização de todas as pessoas desaparecidas ou restos mortais.

[…]
(c) Os nomes das agências e indivíduos que cometeram ou foram, de outra forma, responsáveis pelas violações e, de um modo mais geral, quaisquer unidades do sector da segurança presentes no momento, ou de outra forma implicadas nas violações, bem como os seus superiores e comandantes, e informação relativa ao alcance do seu comando e controlo.
(d) Informação sobre as causas das violações e a falha na sua prevenção.”

De maneira geral, é recomendado que o sigilo sobre informações relativas à segurança seja imputado por órgãos independentes daqueles que implementam as políticas. Dessa forma, o fato de um delegado de polícia ou qualquer outro agente de segurança poder decidir sozinho quais informações tirar do alcance do público fere o princípio da impessoalidade das tomadas de decisão e abre espaço para corrupção e corporativismo.

Nesse sentido, cabe recordar o inciso V do art. 32 da LAI:

Art. 32. Constituem condutas ilícitas que ensejam responsabilidade do agente público ou militar:

V – impor sigilo à informação para obter proveito pessoal ou de terceiro, ou para fins de ocultação de ato ilegal cometido por si ou por outrem;”

Por fim, as políticas de segurança devem atender à população e não vulnerabilizá-la ainda mais – e isso inclui a transparência das decisões sobre ações policiais e sobre sua execução. Para além de corroborar com o racismo estrutural e o vigilantismo (como, por exemplo, através do uso de câmeras para o emprego de reconhecimento facial em espaços públicos), a violência policial também vem privando as vítimas diretas e indiretas das ações de se informarem plenamente sobre o ocorrido – sobretudo, por impedir que se possa articular a possibilidade de denúncia de irregularidades e violações de direitos.

Levando-se em consideração o relevante interesse público da matéria, o Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas entende que o sigilo sobre as informações dos agentes precisa ser rechaçado na medida que recai diretamente sobre informações fundamentais à apuração e responsabilização de violações de direitos humanos, refletindo no controle social e evidenciação das práticas policiais letais estruturadas pelo racismo.

Dessa forma, solicita-se ao diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal, responsável pelo julgamento do recurso em 1ª instância do pedido de acesso a tais informações, que volte a atenção sobre a matéria e revogue a negativa de acesso, concedendo livre acesso aos documentos solicitados.