Lei sancionada pelo Presidente Lula não atende às exigências do Supremo, agrava riscos de corrupção e inaugura o ‘Orçamento Secreto 3.0’

Por Transparência Brasil, Transparência Internacional – Brasil e Associação Contas Abertas

O Presidente Lula sancionou ontem, dia 25 de novembro, e publicou hoje a Lei Complementar nº 210 que se propõe a regulamentar o processo de formulação e execução das emendas parlamentares. Na realidade, no entanto, a lei aprovada pelo Congresso não soluciona as principais lacunas já identificadas pelo Supremo Tribunal Federal, pela Controladoria-Geral da União e por organizações da sociedade civil. Pelo contrário: no modelo aprovado, há um grande risco de que se repitam as mesmas dinâmicas do ‘Orçamento Secreto’ e do ‘Orçamento Secreto 2.0’. 

Abaixo, listamos as principais deficiências da legislação, considerando déficits de transparência e participação social, casos de corrupção e graves impactos sobre as políticas públicas produzidos pelo modelo atual de emendas parlamentares:

  1. Inconstitucionalidade do processo das emendas de comissão

De acordo com o texto (art. 5º, I), as comissões indicarão o destino e o objeto de suas emendas após a aprovação da Lei Orçamentária Anual (LOA), já na fase de execução do orçamento. Como a responsabilidade de executar o orçamento é do poder Executivo, ou seja, do governo federal,  essa configuração viola o princípio da separação de poderes. A participação do Legislativo no Orçamento deve se restringir ao processo legislativo, ou seja, terminar no momento em que a LOA é aprovada no Congresso e sancionada pela Presidência. O  encaminhamento das indicações aos órgãos do governo federal pelos presidentes das comissões já na fase de execução do orçamento anual é uma variação do que se fazia no orçamento secreto, ampliando o espaço para negociações pouco transparentes na alocação destes recursos.

  1. Ausência de informações sobre o processo de aprovação de emendas de bancada e de comissão

Não há um rol mínimo e padronizado de informações que devem constar nas atas das reuniões de bancada e de comissão, não se determinam prazo e local para sua divulgação, nem se obriga a disponibilização das informações em formato estruturado. Tende a se manter o observado atualmente, em que as atas contêm poucas informações sobre o processo decisório e ficam disponíveis na página da Comissão Mista de Orçamento em formato não processável por máquinas e sem conexão direta com portais e sistemas que oferecem dados sobre a execução das emendas. No caso das emendas de comissão, não há obrigação de que as atas (art. 5º, II) indiquem qual líder partidário foi patrocinador de qual emenda, o que mantém o cenário atual de falta de transparência desse aspecto. Adicionalmente, não há normas regimentais sobre o processo legislativo no âmbito das bancadas, que funcionam de modo informal. Diferentemente das comissões, as bancadas não têm sequer um site próprio onde constam informações sobre reuniões e processos decisórios que possibilitariam o acompanhamento pela sociedade das decisões tomadas.

  1. Inexistência de veto para individualização de emendas de comissão 

Embora proíba a individualização das emendas de bancada, a lei não repete essa restrição às emendas de comissão, que continuarão a ser extensões de emendas individuais, mas sem qualquer critério de igualdade na distribuição.

  1. Falta de transparência das emendas Pix na origem e na destinação

O PLP determina apenas que os autores de emendas Pix devem indicar o objeto da transferência, sem estabelecer um grau mínimo de detalhamento para tal indicação do objeto. A tendência é que seja uma informação genérica, como já é observado atualmente. Ao contrário do que estabelece a decisão do Min. Dino, a Lei Complementar 210 não exige que os entes beneficiados por emendas Pix apresentem informações detalhadas sobre como pretendem executar os recursos antes de recebê-los. Pelo contrário, têm apenas que apresentar um ‘plano de trabalho’ e ‘cronograma de execução’ no prazo de trinta dias depois de receber os recursos (art. 8º). O ideal seria que fornecessem informações no grau de detalhamento estabelecido pelo TCU na Instrução Normativa nº 93/2024 (art. 2º, § 6º) Devem dar ‘ampla publicidade’ a estes documentos, mas não se especifica onde ou quando, nem se exige atualização dos mesmos. Não há obrigação de registro desses documentos no Transferegov.

  1. Ausência de mecanismos de prevenção e detecção de casos de conflito de interesses e corrupção na formulação e liberação de emendas

Apesar de notícias recentes de casos de corrupção envolvendo a atuação de assessores parlamentares, o Congresso Nacional não tomou qualquer medida para estabelecer, nesta lei, mecanismos para preveni-los. 

 

  1. Vinculação federativa abandonada.

A vinculação federativa não está contemplada na Lei Complementar 210/2024, ou seja, parlamentares poderão continuar a indicar emendas para projetos em outros estados. Há referência desta restrição apenas para as emendas de bancada, mas, mesmo nesse caso, criaram-se duas exceções (art. 2, I, c e art. 2, II, b) com base em critérios genéricos (‘projetos de amplitude nacional’ e ‘matriz da entidade que tenha sede em estado diverso’).

  1. Falta de priorização gera atrasos e desperdício

A LC 210/2024 aponta que apenas para emendas individuais, haverá “destinação preferencial” para obras inacabadas (art. 7º), de forma semelhante ao que já estabelece a Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 45). Nesse sentido, não há priorização de fato, já que não são definidos critérios para essa priorização. Além disso, as obras inacabadas serão financiadas por emendas ‘fura-teto’, já que elas não serão contadas para o limite de oito emendas por bancada (art. 3, §3º). Mesmo em relação às áreas temáticas priorizadas para as emendas de bancada, se tudo é prioritário, nada é prioritário. O art. 2º, II, d, lista vinte e uma (21) áreas prioritárias para receber recursos de emendas de comissão, além de autorizar a inclusão de novas áreas a cada nova LDO. 

  1. Distribuição desigual dos recursos de emendas parlamentares

Levantamentos mostram que as emendas são distribuídas de modo desigual entre os municípios brasileiros, o que prejudica esforços de combater as desigualdades regionais e gastar recursos de modo efetivo. O texto aprovado não estabelece critérios objetivos nem obriga que as justificativas das emendas apresentem indicadores para demonstrar que os recursos cumprirão o papel de redução de desigualdades regionais, prevista como objetivo fundamental na Constituição Federal (art. 3º, III).

  1. Ausência de critérios técnicos na aplicação dos recursos.

Critérios técnicos são mencionados em alguns artigos da lei, mas sempre para estabelecer a formulação e publicação destes critérios pelo Executivo. Não se prevê nenhum mecanismo de vinculação efetiva dos parlamentares a estes critérios. Como a exigência sobre a qualidade de informações sobre as emendas na fase de aprovação no Congresso é baixa, alguns dos critérios técnicos são impossíveis de aferir (por exemplo, como verificar a compatibilidade do objeto da emenda com a finalidade e atributos da ação orçamentária quando a indicação do objeto pode ser genérica?). Os critérios são iguais aos que já são estabelecidos nas portarias do Executivo que regulam a execução de emendas, e que não parecem ter sido muito efetivos, considerando os resultados das auditorias da CGU feitas por ordem do STF 

  1. Emendas parlamentares continuarão sendo usadas para beneficiar familiares de deputados e senadores

Não institui qualquer medida que restrinja a utilização de emendas parlamentares para beneficiar os parentes dos próprios parlamentares, seja quando são prefeitos ou vereadores das cidades beneficiadas, seja quando são sócios ou vinculados às entidades privadas que recebem estes recursos.

 

  1. Não há incentivos para que pequenos e médios municípios instituam mecanismos de transparência e controle efetivos para administrar os recursos das emendas.

Mesmo sendo amplamente priorizados, os pequenos municípios não têm dever de instituir mecanismos que assegurem transparência e controle social sobre os recursos recebidos. Se mesmo as capitais apresentam graves deficiências nesta seara, o cenário é ainda mais problemático nas cidades que mais recebem esses recursos. 

  1. Vale tudo para gastos da saúde

Muitas das regras aplicáveis às emendas parlamentares são excepcionadas para gastos com saúde, ignorando os vários riscos já evidenciados desse tipo de despesa. Emendas de bancada poderão beneficiar mais de um ente federativo ou entidade privada nos casos de transferência para fundos municipais de saúde, o que não é permitido para as demais (art. 2, §2º, I). As emendas de bancada poderão ser divididas em valores inferiores a 10% do valor total para atender ações e serviços públicos de saúde (art. 2, §4º).