Artigo: E se reduzíssemos as altas remunerações do Judiciário e MP?

Publicado originalmente em O Globo em 3.mai.2024

Enquanto os debates em torno da reforma administrativa tentam criar incentivos para a eficiência do serviço público, premiando servidores pela produtividade e competência, a PEC do Quinquênio vai na contramão da racionalização do Estado ao propor regalias automáticas a uma classe que já recebe muito acima do teto constitucional, atualmente em R$ 44 mil.

Este é apenas mais um episódio da inabalável busca pela maximização dos benefícios de membros do sistema de Justiça. Os exemplos são fartos.
O caso da licença-prêmio ilustra bem o poder desta classe de abocanhar o orçamento público.

Originalmente uma folga remunerada de 90 dias a cada cinco anos trabalhados, a licença-prêmio foi extinta da administração pública federal em 1996. O que fez o Ministério Público da União (MPU)? Não apenas a manteve, como passou a convertê-la em dinheiro aos procuradores na ativa, tornando-se seu principal penduricalho fora do teto constitucional.

Aproximadamente meio bilhão de reais foram liberados nos últimos quatro anos para o bolso de membros do MPU por meio de decisões do Conselho Nacional do Ministério Público, e em afronta à Lei Complementar 75/1993, que apenas permite a conversão da licença-prêmio em dinheiro no caso de morte.

No Judiciário, não há grande diferença. Levantamento da Transparência Brasil a partir do projeto DadosJusBr aponta que o vencimento mensal médio de magistrados em 2023 chegou a R$ 80 mil no TJ-MS. Apenas os tribunais de Justiça estaduais garantiram ao menos R$ 3,8 bilhões acima do teto para seus membros no ano passado. Em grande parte por meio de decisões internas e sem amparo legislativo expresso, como na transformação da gratificação por exercício cumulativo, um benefício remuneratório criado por lei, em uma licença-compensatória passível de venda em caráter indenizatório, que não se sujeita ao limite constitucional.

Engana-se, portanto, o ministro Barroso ao dizer que o Judiciário não tem a chave do cofre em artigo de fevereiro de 2024. Como definir, então, os aumentos de penduricalhos por decisões autorregulatórias do CNJ – e, por associação, do CNMP?

Quando esses artifícios são insuficientes, contam com o apoio da classe política, disposta a legislar por uma minoria elitista agraciando-a com os quinquênios. Parlamentares que preferem afagar possíveis futuros algozes a priorizar o gasto em áreas prioritárias à sociedade como saneamento, saúde e educação.

A alegação, implícita no texto de justificativa da PEC, de que as carreiras do Judiciário e Ministério Público estão pouco atrativas apenas escancara a dissociação da realidade por parcela de seus integrantes. O desvirtuamento de prioridades já está há muito presente nas menos visíveis eleições para procuradorias-gerais e presidência dos tribunais, essencialmente centradas em interesses corporativos por mais regalias, em detrimento da discussão por investimentos para qualidade e inclusão dos serviços.

Idealizemos um sistema de Justiça cujas carreiras, essenciais para uma sociedade justa e igualitária, sejam cobiçadas por pessoas vocacionadas para o serviço público e sensíveis à realidade do país. Uma mudança do deturpado caminho atualmente trilhado, com membros se queixando de alegada privação por enriquecerem menos que o topo da iniciativa privada – onde, aliás, é necessário mostrar constantemente produtividade e competência, não apenas para ganhar aumentos, como para permanecer em seus cargos.

É imprescindível frear essa captura do orçamento público, respeitar a Constituição e limitar as remunerações ao teto constitucional. Reduzir, e não aumentar, os contracheques desta elite do funcionalismo. Como consequência, teríamos mais pessoas interessadas na promoção da Justiça – e não no enriquecimento às custas dela.