Licença-compensatória: PL dos Supersalários valida a manobra que criou um dos penduricalhos mais caros para a administração pública

Projeto transforma o pagamento do benefício de ‘gratificação por acúmulo de serviço’, que é remuneratório, em forma de indenização, tornando desnecessário o uso da licença-compensatória para driblar o teto constitucional 

A licença-compensatória é um dos penduricalhos mais nocivos para a administração pública. Segundo levantamento da Transparência Brasil e Instituto República.org, o penduricalho custou R$ 1,24 bilhão ao Judiciário em 2024 e, por possibilitar o aumento de até ⅓ nas remunerações, foi replicado nas Defensorias Públicas, Tribunais de Contas e até no Senado Federal

Ao invés de restringir os pagamentos da licença-compensatória, o PL dos Supersalários (Projeto de Lei 2.721/21) valida a manobra do Judiciário e Ministério Público que a criou e abriu caminho para a burla do teto constitucional do funcionalismo público.

De gratificação por acúmulo de serviço à licença-compensatória

Judiciário e Ministério Público criaram a licença-compensatória a partir da distorção do objetivo e função de outro benefício, a gratificação por acúmulo de serviço. A manobra foi fundamentada abusando do princípio constitucional de simetria entre as carreiras de seus membros, entendimento de que os benefícios concedidos a juízes também devem se aplicar a promotores, e vice-versa. 

A gratificação por acúmulo de serviço é paga à Justiça Federal e do Trabalho desde 2015 e aos tribunais estaduais desde 2020. O benefício consiste em uma bonificação de ⅓ do salário para membros que atuam em mais de um juízo ou são responsáveis por muitos processos. 

Na legislação que a criou, a gratificação é classificada como remuneratória e sujeita ao teto constitucional, ou seja: se o pagamento dela fizer com que o salário do magistrado fique acima do salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal (atualmente em R$ 46.366,19), um desconto será aplicado para que o valor a ser pago seja igual ou menor ao máximo permitido. 

Em 2022, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) usou o princípio da simetria entre carreiras para recomendar que os MPs também criassem regras para pagar a gratificação por exercício cumulativo a promotores. A recomendação trazia, no entanto, uma diferença: excluía a obrigatoriedade de a verba estar sujeita ao limite constitucional de remuneração. 

Em janeiro de 2023, ao aplicar sua própria recomendação e estabelecer as regras para conceder a gratificação a membros do Ministério Público da União, o CNMP alterou a forma do benefício e o tirou do teto: criou-se a licença-compensatória. 

As mudanças do CNMP permitiram aos promotores do MPU com acúmulo de trabalho escolher entre tirar um dia de folga para cada três trabalhados ou receber o dinheiro correspondente aos dias de folga. Caso o membro opte pelo pagamento, ele a recebe inteiramente como uma indenização, sem a imposição de descontos para ficar dentro do teto constitucional.

No mesmo ano, o Conselho Nacional de Justiça entendeu que seus magistrados tinham o mesmo direito dos promotores e estabeleceu o novo formato do benefício de gratificação, a licença-compensatória. Seguiu-se um efeito cascata da implementação do penduricalho em todo o sistema de Justiça, órgãos de controle e até no Senado. 

PL dos Supersalários legaliza a manobra

O PL dos Supersalários classifica 32 benefícios concedidos no funcionalismo público como indenizações – não limitadas pelo teto constitucional. Desses, 19 são benefícios remuneratórios categorizados incorretamente como indenização que custaram R$ 7 bilhões ao Judiciário em 2024. A gratificação por acúmulo de serviço é um deles.

A gratificação se refere a um pagamento por serviços diretamente relacionados ao trabalho que devem ser somados ao salário, portanto, de natureza remuneratória. O resultado dessa soma não pode exceder o teto constitucional e deve constar no cálculo de contribuições previdenciárias e no recolhimento do imposto de renda. 

Ao transformar, indevidamente, esse benefício remuneratório em indenizatório, o PL o consolida como um ressarcimento de gastos, não limitado pelo teto e, possivelmente, o isenta do imposto de renda. Assim, torna-se desnecessário o uso da licença-compensatória para driblar o teto e turbinar salários. 

O projeto de lei permite que a gratificação de acervo também seja incluída na classificação, indevida, de pagamento indenizatório. Juntos, os três benefícios somaram R$ 2,3 bilhões no Judiciário apenas em 2024, sendo pago a pelo menos 15,5 mil magistrados – o que representa três quintos do total de membros, incluindo os inativos.

Se aprovado, o PL dos Supersalários irá ampliar o pagamento de privilégios como a licença-compensatória. A TB e o República.org recomendam que o PL 2721/21 não seja aprovado pelo Senado Federal, e defendem um amplo debate visando uma proposta que seja eficaz para a alocação racional e eficiente do orçamento público.