Do Fórum: Ter acesso e realizar raspagem de dados públicos são direitos fundamentais

Em nota o Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas, coalizão da qual a Transparência Brasil e mais 29 organizações fazem parte, se manifesta a favor da coleta de dados públicos por meio da raspagem de dados como um direito fundamental do cidadão. A declaração foi publicada em contrariedade às afirmações feitas por Jeferson Dias Barbosa, gerente de projetos e assessor da presidência da Autoridade Nacional de Proteção Dados (ANPD), e Fabrício Lopes, coordenador geral de fiscalização da ANPD, publicadas pela editora Convergência Digital em 25.jul.2023.

O gerente de projetos da ANPD, manifestando-se a respeito de processos administrativos sancionadores, afirmou que realizar raspagem de dados públicos não é permitido, sendo necessário “uma correspondência com a finalidade para a qual o dado foi solicitado”. Declaração que em seguida foi complementada por Lopes: “não é só porque está lá que pode ser usado de qualquer maneira”. 

Leia a nota do Fórum:

As declarações (de Jeferson Dias Barbosa e Fabrício Lopes), além de equivocadas por não encontrarem respaldo na legislação vigente no país, também demonstram possível desconhecimento sobre a importância da raspagem de dados como técnica para coleta de dados.

Em primeiro lugar, no sistema jurídico brasileiro, o princípio da legalidade (art. 5º, II, Constituição Federal) é claro em estabelecer que às pessoas privadas, físicas e jurídicas, é permitido realizar qualquer tipo de atividade, exceto aquelas que a legislação proibir expressamente. Nesse sentido, não há atualmente no direito brasileiro lei que proíba a coleta de dados públicos por meio da raspagem de dados. Nem mesmo a LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei Federal 13.709/2018) proíbe a utilização dessa técnica. Pelo contrário: quando não for expressamente proibida, a legislação assegura presunção de boa-fé à livre iniciativa (art. 3º, V, da Lei Federal 13.874/2019 – Lei de Liberdade Econômica).

Em segundo lugar, no âmbito do acesso a dados públicos, a legislação é clara em assegurar a qualquer pessoa — física ou jurídica — o direito de acessar de forma automatizada e irrestrita dados e informações publicadas pela administração pública. Nesse sentido, destacam-se:

  1. art. 8º, §3º, III da Lei Federal 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação – LAI), que prevê como requisito em sites de órgãos e entidades públicas a possibilidade de acesso automatizado;
  2. art. 25, III da Lei Federal 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), que reforça a previsão da Lei de Acesso à Informação, estabelecendo que aplicações de internet do poder público devem ser compatíveis para a leitura humana e o tratamento automatizado das informações;
  3. art. 29, §1º, II e IV da Lei Federal 14.129/2021 (Lei de Governo Digital), que reafirma o dever de o poder público garantir o acesso irrestrito a dados em formato legível por máquina e aberto, sendo seu uso permitido irrestritamente.

Em terceiro lugar, considerando que em nosso país a governança de dados públicos ainda engatinha, a raspagem de dados é uma ferramenta essencial tanto para órgãos públicos quanto para entidades privadas e da sociedade civil. Órgãos como o Tribunal de Contas da União, a Controladoria-Geral da União e o Ministério Público Federal utilizam a raspagem de sites públicos como forma de realizar auditorias baseadas em dados, tornando mais rápida, econômica e eficiente a atuação do controle público. A Escola Nacional de Administração Pública, por sua vez, inclui a raspagem de dados como conteúdo no currículo de seu curso de ciência de dados para servidores públicos federais. 

Na esfera privada, a raspagem é utilizada por jornalistas para coletar dados e produzir grandes reportagens de impacto onde o governo ainda não disponibiliza, por ausência de recursos ou não priorização, dados estruturados e organizados. Além disso, pesquisadores e empresas utilizam dados obtidos via raspagem para desenvolver soluções inovadoras para problemas sociais, facilitando o acesso a informações relevantes e úteis para a sociedade civil, que até então não contava com estes serviços.

Em quarto lugar, a própria razão de ser do Portal da Transparência é que cidadãos possam acessar dados sobre agentes públicos e sobre o uso de recursos públicos e utilizá-los para qualquer finalidade que não seja expressamente proibida por lei, atendendo à garantia do acesso à informação previsto em Constituição e ao fomento da transparência pública e o desenvolvimento do controle social da administração pública conforme prevê a LAI. Conforme asseverado pelo Supremo Tribunal Federal em diversas decisões vinculantes, o acesso a informações e a transparência são essenciais para a existência e manutenção de um Estado Republicano. Sendo assim, a afirmação de que os dados lá publicados não poderiam ser utilizados de qualquer maneira contraria a presunção de boa-fé e ignora o legítimo interesse do cidadão em usar e acessar essas informações. 

Por fim, destaca-se que atividades de raspagem de dados conforme descritas aqui divergem de práticas realizadas para fins ilícitos ou fraudulentos, como no caso recentemente punido pela ANPD em sua primeira sanção a um agente privado. Nesta situação, a ANPD puniu corretamente o tratamento de dados pessoais que não eram públicos (como os do Portal da Transparência), nem tornados públicos pelo próprio titular, e ocorria sem respaldo legal.