Revelado pelo Estadão no último domingo (9.mai.2021), o “orçamento secreto” (ou “tratoraço”, ou ainda “Bolsolão”) de R$ 3 bilhões criado pelo governo Bolsonaro apresenta, uma vez confirmado, camadas distintas de corrupção. É como uma matrioska de desvios.
Segundo a reportagem, o Executivo federal liberou esse montante do orçamento federal de 2020 para parlamentares em troca de apoio. Os congressistas puderam indicar onde e em que o dinheiro, que pertence ao Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), deveria ser gasto. As indicações foram incluídas como “emendas do relator [ao Orçamento]”, cuja execução não é obrigatória e, segundo reportagem da Folha de S.Paulo, são um recurso “rateado entre vários congressistas a depender dos acordos políticos firmados”.
A mais externa das camadas dessa matrioska de corrupção é a compra de influência pelo governo federal por meio da liberação de recursos públicos. Trata-se de uma prática “velha”, como fez questão de destacar o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), na última segunda-feira. Cabe lembrar que sua existência é facilitada por janelas de oportunidade presentes nas instituições, conforme apontou recentemente Manoel Galdino, diretor-executivo da Transparência Brasil.
Há um excesso de obras em andamento sem recursos garantidos, o que cria chances para o Executivo negociar com o Congresso o destino do dinheiro. A crise fiscal em que municípios e estados estão mergulhados, agravada pela pandemia, é um ingrediente a mais, ao limitar a capacidade desses entes de investir. Os congressistas acabam com duas opções: ou levam o recurso para suas bases e “trocam” seus votos ou votam de forma independente e ficam sem os investimentos. De acordo com reportagem de O Globo, o governo usa desde 2020 uma “taxa de fidelidade” para definir a distribuição de verbas.
Sobre essa primeira camada, tem-se o verniz da falta de transparência sobre o processo de distribuição dos recursos – registrado apenas em ofícios enviados pelos congressistas beneficiados diretamente para o MDR, sem divulgação. Diante de pedido via Lei de Acesso à Informação pelos documentos, alguns parlamentares chegaram a alegar sigilo sobre os documentos, sob o argumento incabível de risco à segurança do Estado ou, ainda mais absurdo, do “risco à sua honra e à de sua família”. Se já é difícil rastrear e fiscalizar o uso do dinheiro quando há indicação clara da origem e destino dos recursos na Lei Orçamentária Anual (LOA), a ausência dessa informação leva o controle às raias do impossível.
A segunda camada de corrupção é a múltipla violação de regras. Documentos apresentados na reportagem sugerem que congressistas ocuparam o lugar do MDR para indicar onde e para que os recursos seriam usados. Os critérios técnicos e socioeconômicos que deveriam embasar a distribuição da verba, conforme dita a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), foram soterrados por interesses específicos de ordem pessoal ou eleitoral.
Ainda em relação à LDO, a prática violou determinação do próprio presidente da República. Bolsonaro vetou trecho da regra que permitia a deputados e senadores indicar e priorizar o destino de verbas originadas em emendas além das próprias (como as que compõem o “orçamento secreto”). A justificativa do veto foi justamente o risco de violação à impessoalidade, ou seja, de que o dinheiro fosse usado de acordo com interesses particulares.
Por fim, considerando que parte da verba foi direcionada para obras, o esquema jogaria trecho da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) por água abaixo: de acordo com o art. 45, a lei orçamentária e os créditos adicionais só podem incluir novos projetos depois de os que estão em andamento serem atendidos e as despesas de conservação do patrimônio público serem contempladas. Hoje, há mais de 12 mil obras ainda em execução pelo MDR e que poderiam – mas não irão necessariamente – receber esses recursos indicados por parlamentares.
De acordo com a reportagem, a maioria dos recursos passa pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf). Aparece aí outra das camadas da matrioska: o aparelhamento de estatais como moeda de troca para o apoio político. Cargos como superintendências locais estão ocupados com aliados do governo e dos congressistas beneficiados.
Não é de hoje que a Transparência Brasil aponta a necessidade de reduzir ao máximo a influência política na nomeação de ocupantes de cargos públicos. “A liberação de nomeações é o que mostra a gênese [origem e desenvolvimento] da corrupção”, afirmou Claudio Weber Abramo – então diretor-executivo da ONG – em 2006, durante audiência na CPI dos Correios. Em junho de 2013, a Transparência Brasil enviou aos membros do Congresso Nacional um manifesto pela redução do número de cargos de confiança, sugerindo uma proposta de emenda constitucional para limitar a livre nomeação de servidores não concursados.
Dentro de todas essas camadas, está uma peça ainda obscura: o destino final do dinheiro. Não é possível saber neste momento se os recursos serão usados para, além do óbvio favorecimento a seus redutos eleitorais, o enriquecimento dos próprios congressistas beneficiados — alguns parlamentares estranhamente direcionaram recursos para fora de seu reduto eleitoral. Além disso, os indícios não apontam para a probidade na aplicação dos recursos: há, desde já, suspeita de superfaturamento.
A confirmação só vem depois de a aplicação do recurso ser iniciada, quando há possibilidade de identificar os fornecedores dos bens e serviços para os quais a verba foi destinada e os detalhes das contratações. Ainda assim, não há garantias: além do verniz da falta de transparência já citado, há o fato de que a Codevasf, como estatal, tem regras mais flexíveis de contratação. Somado ao aparelhamento mencionado acima, apresenta-se um terreno fértil para o mau uso de dinheiro público. Se e quando alguma irregularidade ou ineficiência for identificada, o prejuízo aos cofres públicos em nome do apoio parlamentar já terá se concretizado.
Negociações com aliados são parte indissociável da política. O caso em questão, no entanto, desborda para a ilegalidade. Há um veto ao trecho da LDO que permitia a congressistas determinarem o destino de recursos originados de emendas do relator; a indicação da destinação dos recursos não obedece ao disposto em lei (atende, primariamente, interesses eleitorais). Houve reserva de recursos apenas para certos parlamentares (os fiéis), desobedecendo ao princípio da isonomia e da impessoalidade.
Fechar o cerco institucional é a melhor forma de evitar práticas como esta. Quatro medidas se destacam: reforçar a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal, ampliar constantemente a transparência sobre todas as etapas da aplicação de recursos públicos, reduzir o número de cargos de livre nomeação e aplicar punições rápidas e exemplares a membros do Executivo que descumpram as leis. Igualmente importantes e urgentes, são medidas que libertarão a sociedade da dependência do (escasso) rigor ético dos agentes políticos para evitar troca de verbas por apoio.