Ação do ministro da Justiça no inquérito das “fake news” é um erro em sucessão de equívocos

André Mendonça em sua posse como ministro da Justiça. Foto: Isac Nóbrega/PR

O chamado inquérito das “fake news”, que em 27 de maio levou ao cumprimento de 29 mandados de busca e apreensão pela Polícia Federal contra aliados do governo Bolsonaro, já é em si questionável. A atuação do ministro da Justiça no processo é mais um elemento nessa sucessão de erros.

Instaurado em março de 2019 por decisão única do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli em uma interpretação controversa do regimento interno, o Inquérito 4781 já chegou a resultar em censura a reportagens (revertida diante da repercussão negativa). A relatoria por Alexandre de Moraes foi determinada de maneira discricionária. O processo se mantém em andamento mesmo após a então procuradora-geral da República Raquel Dodge declarar seu arquivamento em abril de 2019, devido à ausência do Ministério Público como promotor da investigação. Abrangente em seu objeto, é mantido em absoluto sigilo.

Na madrugada desta quinta-feira (28 de maio), o ministro da Justiça André Mendonça pediu ao STF o trancamento do processo em relação ao ministro da Educação. Abraham Weintraub foi convocado para depor à Polícia Federal sobre a declaração em que defendeu a prisão de ministros da Corte durante a reunião ministerial de 22 de abril divulgada na semana passada (“Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF”).

Ao fazê-lo, Mendonça age como se ainda ocupasse o cargo de Advogado-Geral da União (AGU), que deixou há um mês. É a AGU que tem como função representar e defender os interesses da União em questões jurídicas, conforme pontua o Art. 131 da Constituição Federal.

O Ministério da Justiça que ele chefia tem como uma de suas funções a “defesa da ordem jurídica, dos direitos políticos e das garantias constitucionais”, mas não há precedentes para sua atuação enquanto representante legal de outro ministro. A Lei 13.844/2019, que define as competências da pasta, não menciona entre as funções do ministro a atuação diante de tribunais superiores em defesa de membros do governo.

Mesmo a entrada da AGU nesta situação seria discutível. Não parece ser de interesse da União fazer a defesa de um ministro acionado judicialmente por emitir uma manifestação anti-democrática. Weintraub já conta com seu próprio apoio jurídico em processos referentes à honra, como é o caso – são, inclusive, servidores do Ministério da Educação. Outro desvio ético, a propósito.

Além disso, o pedido de habeas corpus feito por Mendonça inclui os demais investigados no processo, nenhum deles ligado à União: empresários, comunicadores, parlamentares, ativistas, membros de partido. Mais do que impróprio, pode ser enquadrado como advocacia administrativa. É o uso do cargo público e das estruturas do Estado para atender interesses particulares. Algo que as falas dos presentes à mesma reunião ministerial que está no centro da convocação de Weintraub já sugeriam que o governo estaria disposto a fazer.

Um processo iniciado com graves vícios; uma tentativa de intervenção indevida. E assim, de erro em erro, o princípio da legalidade no Brasil se enfraquece, levando com ele a democracia.

Transparência Brasil, 29 de maio de 2020.