Em decisão publicada em 27 de fevereiro, a Controladoria-Geral da União (CGU) contrariou sua própria função de garantir o cumprimento da Lei de Acesso a Informação (LAI) no governo federal. Ao impedir a divulgação de relatórios de monitoramento de redes sociais encomendados pela Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) com base em argumentos frágeis, violou princípios da administração pública, descumpriu a LAI e feriu o interesse da sociedade.
A questão chegou à CGU após a Secom negar ao jornal “O Estado de S. Paulo”, por três vezes, o acesso a todos os relatórios produzidos entre 1º de janeiro a 23 de novembro de 2019. Na decisão, o Ouvidor-Geral da União adjunto, Fabio do Valle Valgas da Silva, deu razão à Secom e manteve a negativa de acesso, contrariando parecer técnico da auditora federal de finanças e controle da CGU, Liana Cristina da Silva. Segundo análise da auditora, as justificativas da Secom não sustentavam a negativa de acesso e, portanto, as informações deveriam ser entregues ao jornal.
As explicações da Secom para manter os relatórios escondidos foram de distorções de trechos da LAI até alegações absurdas de que o material é sujeito à legislação de direitos autorais e de que as informações não são de interesse público. Todos os argumentos evidenciam a ausência de fundamentação válida, o desrespeito à LAI e aos princípios da administração pública, fatores endossados pela CGU na decisão do Ouvidor-Geral adjunto.
A negativa ao pedido inicial
O pedido inicial foi remetido ao Departamento de Conteúdo e Gestão de Canais Digitais da Secom. Em sua negativa, a Secom distorceu artigos da LAI e do decreto nº 7.742/12, que a regulamenta no Executivo federal. Qualificou os relatórios como “documentos preparatórios para tomada de decisão ou ato administrativo” – que, segundo a regra, não podem ser divulgados até que a tomada de decisão ou ato ocorram.
Eis o primeiro problema: a LAI e o decreto deixam claro que qualquer negativa que utilize o argumento de “documento preparatório” precisa, no mínimo, demonstrar ao cidadão a existência de um ato decisório pontual e definido no tempo, a partir do qual a informação será tornada pública. O artigo 7º, § 3º da LAI diz que: “O direito de acesso aos documentos ou às informações neles contidas utilizados como fundamento da tomada de decisão e do ato administrativo será assegurado com a edição do ato decisório respectivo.”
A mesma determinação aparece no artigo 20 do decreto: “O acesso a documento preparatório ou informação nele contida, utilizados como fundamento de tomada de decisão ou de ato administrativo, será assegurado a partir da edição do ato ou decisão.”. Um olhar cuidadoso a essa redação evidencia a condicionalidade da “edição do ato ou decisão” ao fornecimento da informação requerida. Isso não foi demonstrado na primeira negativa, e o jornal apresentou recurso em primeira instância.
Negativas aos recursos em primeira e segunda instância
A resposta ao primeiro recurso traz outros despautérios. A Secom alterou o argumento, apelando para o absurdo: alegou que não poderia fornecer os relatórios pois se tratam de “obra científica”, dotados de “inovação” e, por isso, sujeitos à legislação de direitos autorais, de forma que “a distribuição do material solicitado não é intrínseca ao contrato firmado pelo autor com a Administração Pública”, estando sujeita à aprovação da agência de publicidade contratada.
É difícil discernir se é um caso de ignorância ou má-fé. Não parece sequer cabível que órgãos federais desconheçam ou voluntariamente ignorem as leis que regem seus próprios atos. O artigo 111 da Lei das Licitações (Lei nº 8.666/93) determina que a administração pública só pode contratar serviço técnico especializado – como o monitoramento de redes sociais – se a empresa contratada abrir mão de seus direitos autorais e transferir não somente a tecnologia mas “todos os dados, documentos e elementos de informação pertinentes à tecnologia”.
Como se não bastasse, a Secom ainda alega que o contrato firmado com a empresa estabelece, nos itens 6 e 8 do inciso I de sua cláusula segunda, a “previsão de sigilo do conteúdo produzido”. O curioso, porém, é que o inciso em questão determina as obrigações da empresa contratada. Os itens determinam que ela deve:
“6) Manter, por si e por seus prepostos, sob pena de responsabilidade civil, penal e administrativa, irrestrito e total sigilo sobre:
a) Os assuntos de interesse da CONTRATANTE ou de terceiros de que tomar conhecimento em decorrência da execução do Contrato;
b) Os produtos gerados no decorrer dos trabalhos e as informações, os dados, os documentos e outros elementos utilizados na execução do Contrato, vedado o seu uso ou divulgação a terceiros, ainda que parcial, sem prévia e expressa autorização da CONTRATANTE.
(…)
8) Assinar Termo de Compromisso relativo a confidencialidade e sigilo, conforme modelo definido pela CONTRATANTE, se comprometendo, por si, seus prepostos e funcionários, inclusive no exterior, a não repassar o conhecimento das informações confidenciais, responsabilizando-se por todas as pessoas que vierem a ter acesso às informações, por seu intermédio, e obrigando-se, assim, a ressarcir a ocorrência de qualquer dano e/ou prejuízo oriundo de eventual quebra de sigilo das informações fornecidas”
Ou seja, na realidade, ambos os itens do contrato advogam contra o próprio argumento de direitos autorais, já que demonstram que a empresa não tem prerrogativa alguma sobre o material produzido e está obrigada a manter o sigilo sobre ele, salvo se a contratante – a própria Secom – autorizar a publicidade. Nada disso é surpreendente aos que conhecem o direito administrativo: os contratos públicos são notórios por suas “cláusulas exorbitantes”, as quais garantem prerrogativas à administração pública que seriam consideradas ilícitas em contratos particulares. Isso existe justamente para assegurar o respeito ao interesse público, o que engloba o direito ao acesso a informação.
Diante de novo recurso de “O Estado de S. Paulo” contra a negativa, a Secom retornou à argumentação inicial, ainda sem dizer qual seria a decisão ou o ato a ser tomado. O jornal então levou o caso à CGU.
Recurso em terceira instância e o entendimento da CGU
Na terceira instância, o Ouvidor-Geral adjunto ignora completamente o parecer técnico da auditora que avaliou o caso, segundo o qual as razões fornecidas pela Secom para negar a informação continuavam insuficientes frente às exigências da LAI. Fabio do Valle Valgas da Silva acata os argumentos da Secretaria, somando mais despropósitos aos argumentos pela negativa:
“Os temas de monitoramento são revisados constantemente e não se vislumbra interesse público em seu conteúdo, uma vez que são desenvolvidos apenas para a tomada de decisão da SECOM e demais unidades.”
Afirmar que uma informação que supostamente embasa a decisão de um agente público não “vislumbra interesse público” é absurdo. Dizer que o produto fornecido à administração pública por uma empresa privada contratada com dinheiro público não “vislumbra interesse público” é ainda pior. Indo além, afirmar que um relatório de monitoramento das opiniões dos cidadãos brasileiros nas redes sociais não “vislumbra interesse público” é praticamente enterrar toda e qualquer noção de controle social. Toda decisão tomada pela administração pública é de interesse público, e toda contratação realizada pelo poder público deve ter como finalidade a concretização do interesse público.
A insistência em manter esses relatórios fora dos olhos da sociedade levanta suspeitas sobre as intenções do atual governo em relação a essas informações. Que tipo de informação estaria sendo coletada, e que tipo de decisão ela embasará que não poderia ser de amplo conhecimento do cidadão brasileiro? Ou trata-se apenas do clássico temor de que informações públicas evidenciem a irrelevância ou ineficiência de ações do governo?
O Ouvidor-Geral adjunto deu razão também a um trio de alegações da Secom que desafiam a lógica. A primeira diz:
“a) as tomadas de decisão às quais os relatórios de monitoramento de redes sociais servem de subsídios ainda não foram finalizadas e não se traduziram em atos, que no caso da área de comunicação, foco de atuação da SECOM, podem se materializar em produções de conteúdo para os canais próprios do Governo Federal; realização de campanhas de comunicação; definições de agendas ou outros;”
Ora, se os atos embasados nos relatórios são ações de comunicação pública em canais oficiais, não há lógica em manter o monitoramento sob essa espécie de sigilo.
O segundo disparate da Secom é dizer:
“b) apesar de não ser possível definir claramente o período fim que um ato de comunicação será tomado, verifica-se que algumas campanhas de comunicação podem ser definidas em até 12 meses após a identificação de um alerta exposto nos relatórios de monitoramento; grande parte dos relatórios de monitoramento desenvolvidos neste ano dizem respeito a ações de Governo ainda em curso;”
Para negar o acesso a informação sob a alegação de que se trata de documento preparatório, sua finalidade precisa estar definida – especialmente quanto à temporalidade. Do contrário, no limite, tudo e qualquer coisa poderia ser “documento preparatório”. É preciso estabelecer prazos claros para o cidadão. Sem isso, a negativa de acesso não está devidamente justificada. Se determinar um prazo é requisito para a classificação de documentos verdadeiramente sigilosos, por que não seria para um mero relatório de mídias sociais? E se um órgão público cuja função é planejar e executar a comunicação do governo não consegue definir prazos para sua ações, há um problema de gestão.
Um terceiro ponto, que aparece em dois momentos, esbarra na ilegalidade:
“c) em relação aos relatórios gerais, de recebimento diário, há que se considerar que (…) a disponibilização dos relatórios nesse momento seria parcial, sendo quase sua totalidade não passível de divulgação, o que poderia frutar (sic) as expectativas do administrado, não atendendo ao objeto do seu pedido;”
“d) ainda sobre o aspecto da frustração do administrado, há que se considerar, ainda, que os relatórios de monitoramento são produzidos especificamente para uso interno da Secom, obedecendo a parâmetros específicos para aquele momento ou demanda, de modo que a apresentação desses relatórios ao administrado em contexto destacado do qual foi produzido, pode vir a ser interpretado de maneira distante ao qual foi elaborado;”
Não importa que se avalie uma suposta “expectativa do administrado” se isso é usado em favor do sigilo ilegal. A LAI é clara: a publicidade é a regra. Além disso, como diz seu art. 7, § 2º: “Quando não for autorizado acesso integral à informação por ser ela parcialmente sigilosa, é assegurado o acesso à parte não sigilosa por meio de certidão, extrato ou cópia com ocultação da parte sob sigilo”. Tudo o que pode ser divulgado, deve ser. Essa argumentação parece insinuar uma tentativa de manter certas informações públicas completamente ocultas, sem assumir o ônus de ter que submetê-las aos procedimentos corretos de classificação de informações.
Não cabe ao órgão público negar o acesso com base no que ele espera que o cidadão virá a sentir, pensar ou interpretar sobre a informação recebida. O § 3º do artigo 10 da LAI é categórico: “são vedadas quaisquer exigências relativas aos motivos determinantes da solicitação de informações de interesse público.” Se não é possível exigir previamente a motivação ou a expectativa do cidadão como condição para o atendimento de uma solicitação, negar o acesso a informações com base em deduções sobre tal motivação ou expectativa é ainda pior. Simplesmente não existe cenário em que seja cabível condicionar o cumprimento da lei, pela administração pública, a uma avaliação prospectiva e subjetiva das motivações, vontades, pensamentos ou sentimentos do cidadão.
Na tentativa de estabelecer esse prazo, a Secom se inclina à opacidade:
“e) em razão do exposto, a SECOM recomenda que os relatórios de monitoramento não sejam disponibilizados em período inferior a 12 meses de sua elaboração, sendo que sua divulgação deve ser avaliada caso a caso, a depender da perecibilidade de suas informações”
A recomendação não está embasada em nenhuma legislação. Sequer se digna a exprimir uma data limite para a publicação do material. A leitura cuidadosa do texto mostra que não determina a publicidade dos relatórios em um prazo de 12 meses, mas a não-publicidade – ou seja, o sigilo – para os próximos 12 meses, no mínimo. Em seguida, concede uma única hipótese de divulgação, mediante avaliação “caso a caso, a depender da perecibilidade”. O que é a perecibilidade? Quais são os critérios objetivos, claros, razoáveis e legais para verificar perecibilidade de uma informação? Quem vai verificá-la? Nem a própria Secom tem acordo sobre isso. Em resposta à auditora cujo parecer técnico foi ignorado, disse: “As informações presentes nos relatórios de monitoramento não perecem”. Se não perecem, quer dizer que essa informação nunca será fornecida ao cidadão?
As sucessivas respostas e argumentações vagas sustentam uma estratégia de ocultação indeterminada das informações. Nem mesmo documentos verdadeiramente sensíveis e pertinentes à segurança nacional têm essa prerrogativa. Tudo o que se pretender sigiloso deve ser satisfatoriamente justificado e seguir procedimentos de classificação previstos na LAI, especialmente em relação aos prazos para sua desclassificação, que devem estar expressos, bem definidos e respaldados pela legislação.
A recomendação da Secom é uma tentativa de manter certas informações públicas completamente ocultas, sem submetê-las aos restritos critérios para que possam ser tornadas sigilosas de fato. Fica evidente a estratégia de impor um sigilo por fora dos ritos determinados na LAI, ou seja, de maneira ilegal.
É absolutamente incabível e pernicioso à transparência pública que o Ouvidor-Geral da União adjunto aceite a série de justificativas sem fundamentação legal apresentadas pela Secretaria de Comunicação como suficientes para negar o acesso a informações públicas que não estão submetidas às hipóteses de sigilo permitidas em lei e são de claro interesse público. Essa decisão enfraquece a LAI e contribui para erodir a transparência pública, coisas que a própria CGU alega defender. Ela precisa ser revista pela Comissão Mista de Reavaliação de Informações no sentido de fornecer as informações solicitadas, uma vez que os argumentos continuam insuficientes para mantê-las ocultas, nos termos da LAI.