Nem toda corrupção é igual

No senso comum, toda corrupção é igual e tem as mesmas causas. A definição clássica — abuso de cargo público para obter benefícios privados — é bastante genérica para abarcar praticamente todo tipo de corrupção. Porém, estudos recentes, como os da cientista política Yuen Ang, mostram que é preciso distinguir os tipos de corrupção, pois possuem causas distintas, e requerem soluções específicas.

Índices globais de percepção de corrupção, como os da Transparência Internacional (que não tem relação formal alguma com a Transparência Brasil, onde eu trabalho) e do Banco Mundial, têm o imenso mérito de chamar a atenção para o problema e permitir comparações internacionais. Contudo, obscurecem o fato de que países com índices similares podem e experienciam tipos de corrupção diferentes, em graus diferentes. Além disso, subestimam a corrupção que acontece nos países ocidentais, de troca de dinheiro por acesso a poder (em geral legalizada), reforçando uma narrativa de que corrupção é coisa de não-brancos.

Ang, em seu trabalho sobre corrupção na China, criou uma tipologia sobre corrupção em que distingue seus tipos em duas dimensões: se envolve elites, e se envolve trocas ou roubo puro e simples. O quadro abaixo ilustra os quatro tipos de corrupção, adaptado de [1].

 

O tipo de corrupção designado por “pequeno roubo” seria alguém desviar recursos públicos diretamente para o próprio bolso. Por exemplo, um servidor de baixo escalão usar um carro público para fins particulares. Ang inclui também nesses casos a extorsão, quando um policial, por exemplo, pega um passaporte de um turista e exige propina em troca de devolver o documento. O tipo “grande roubo” seria o caso desses ditadores que desviam dinheiro dos cofres públicos para contas particulares. Mais próximo do Brasil, práticas como as rachadinhas e pagamentos de penduricalhos (ainda que eventualmente legalizados) também entram nesta categoria, por envolver elites e não haver troca entre particulares e o estado.

A corrupção de graxa é aquela tipicamente feita para agilizar negócios, como pagar por uma autorização governamental ou licença. Por fim, acesso ao poder é quando contatos, pagamentos de favores, presentes ou diretamente propinas para membros da elite garante contratos, monopólios e benefícios especiais de todo tipo. É o que boa parte da lava-jato revelou amplamente no petrolão.

A tipologia de Ang é bastante útil, mas ainda acho que deixa de fora uma dimensão essencial: se a corrupção envolve apenas pessoas físicas ou pessoas jurídicas. Essa distinção é importante porque, no Brasil, o pagamento de propina por pessoas físicas para acesso a serviços público é raro. Em outros países, é comum cidadãos terem de pagar propina para ter acesso a direitos, como emitir um passaporte, documento de identidade, matricular o filho na escolha ou tomar uma vacina. No Brasil, esse caso é raro e encontramos problemas isolados, como emissão de CNH. Por outro lado, pessoas jurídicas pagando fiscais de todo tipo para ter seu comércio ou empresa funcionando ou livre de fiscalizações é comum no país. As causas de cada tipo de corrupção, porém, são distintas, bem como suas consequências. Uma economia informal grande explica em parte o grande volume de propinas pagas a fiscais de todo tipo por empresas. Por outro lado, o pagamento de propinas para acesso a direitos não tem relação com o tamanho da economia informal.

Quais as causas no Brasil dos demais tipos de corrupção mapeados? Além da economia informal, já mencionada, a do tipo graxa, por exemplo, é minimizada com medidas tipicamente liberais como redução de burocracia e simplificação de regras, na medida em que reduz a possibilidade de burocratas e servidores poderem vender facilidades diante das dificuldades existentes.

Já a corrupção de acesso ao poder tipicamente não é prevenida por medidas liberais, como privatizações ou simplificação de regras e burocracias. Boas legislações regulando o lobby, as doações de campanha e a transparência orçamentária sobre benefícios fiscais, por exemplo, são muito mais importantes. Similarmente, a presença de imprensa livre e forte é outro fator importante para limitar essa relações pouco republicanas entre empresários e o poder público. No fim das contas, uma democracia robusta é o melhor antídoto para esse tipo de corrupção.

O pequeno roubo em geral não envolve esquemas sofisticados de corrupção. Por envolver muito relações esporádicas, não recorrentes, é onde a ética individual e a cultura de um país podem ter maior poder explicativo. Por que existe muita prática de pagar propina para obter CNH, mas não para concursos de maneira geral? Múltiplos equilíbrios são possíveis e, uma vez estando em um mau equilíbrio, é difícil sair dele apenas por meio de pregação ética, embora um bom equilíbrio possa funcionar sem excessivas preocupações com controle e punições.

O grande roubo no Brasil tende a ser raro no executivo, pois não temos políticos desviando recursos públicos (peculato puro e simples) sem alguma troca com o setor privado. A razão é o conjunto de controles existentes e sistemas robustos de arrecadação de tributos e despesas. É importante não confundir o grande roubo com acesso a poder. Casos como o da Petrobrás são do segundo tipo.

O grande roubo, porém, é comum no sistema de justiça, na forma de penduricalhos (mesmo se legalizados) e no legislativo, na forma de rachadinhas e desvios de verbas de gabinete e indenizações. As principais causas envolvem a baixa responsabilização (accountability) dos agentes e a falta de controle externo desses órgãos. Na prática, é baixa a fiscalização de legislativos e sistema de justiça por órgãos de controle como o ministério público — e os tribunais de contas não fiscalizam esses órgãos. Assim, não possuem incentivos para racionalizar as despesas e exercerem controles internos rigorosos. Além disso, o espírito de corpo é muito mais forte nessas carreiras, o que facilita esse “acordão” de desvio de recursos públicos.

Como podemos ver, as causas para cada tipo de corrupção são diferentes e requerem soluções diferentes. O Brasil possui altos níveis de corrupção em quase todos os tipos, com uma única exceção, que é o pagamento de propina para acesso a direitos pela população. Isso mostra que o Brasil não é inerentemente corrupto ou que sempre adota o jeitinho. Por outro lado, o tipo de corrupção mais difícil de ser resolvido é o de acesso ao poder, pois o próprio capitalismo é um sistema em que riqueza comanda poder e influência.

Nesse sentido, quanto maior a desigualdade, de classe, racial e de gênero, maior a facilidade de poucos grupos capturarem o estado para fins particulares. Isso porque, tanto os mecanismos de controle quanto o próprio estado reproduzirão essas desigualdades. Imprensa, sociedade civil, órgãos de controle e a elite política e burocrática serão liderados pelos mesmos perfis e que fazem partes das mesmas redes, com interesses conflitantes. Com essas desigualdades, a imprensa será mais fraca, a sociedade civil menos atuante e os freios e contrapesos menos efetivos.

Assim, estrategicamente falando, talvez faça mais sentido priorizar os demais tipos de corrupção e, na medida em que produzam mais eficiência econômica e ajudem a reduzir desigualdades. Com o desenvolvimento do país, será mais fácil ter uma democracia mais inclusiva e combater a corrupção de acesso ao poder.

[1] https://oecd-development-matters.org/2020/06/25/unbundling-corruption-why-it-matters-and-how-to-do-it/

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Este artigo foi publicado originalmente em 26 de abril de 2021 no Blog do Fausto Macedo, como parte da série Não Aceito Corrupção