Reportagem: Taís Seibt e Maria Vitória Ramos
Nove órgãos federais responsáveis pela gestão de políticas socioambientais no Brasil têm 99 militares em cargos comissionados, conforme levantamento exclusivo feito pelo projeto Achados e Pedidos para o Monitor de Dados Socioambientais, desenvolvido por Abraji, Transparência Brasil e Fiquem Sabendo, com financiamento da Fundação Ford. O relatório foi produzido a partir de dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) e verificados em portais da transparência e diários oficiais da União e dos Estados.
Foram questionados diretamente órgãos federais com atuação na área socioambiental, o Ministério da Economia e os Comandos das Forças Armadas. Diante de inconsistências encontradas, principalmente por diferenças na data de extração dos dados em cada órgão, foram verificados os vínculos de todos os servidores listados para chegar à relação atualizada de militares comissionados em atividade nos órgãos ambientais.
A unidade com mais militares em cargos de direção e assessoramento superior é a Fundação Nacional do Índio (Funai), que concentra mais de um terço de todos os vínculos identificados: são 33 servidores, exatamente um terço do total. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), com 19, e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), com 17, completam os três órgãos ambientais mais militarizados.
De todos os 99 vínculos identificados, apenas oito são de militares da ativa, sendo dois licenciados. Em um caso não foi possível confirmar a situação na origem, se ativa ou inativa. Os demais são militares inativos, incluídos os que estão na reserva, aposentados ou reformados, que, juntos, representam 91% do total.
Quase a metade dos militares comissionados em órgãos ambientais é originária do Exército, são 49 servidores (49%), seguido de 28 ex-policiais militares (28%), sendo 16 deles oriundos da Polícia Militar de São Paulo.
Os militares que exercem função de confiança na gestão socioambiental do governo federal são, em ampla maioria, de alto escalão na hierarquia das Forças Armadas. Coronéis são exatamente um terço (33), seguidos de tenentes-coronéis e capitães.
Inconsistências nos dados
Nos pedidos respondidos pela Marinha e pela Aeronáutica, a informação foi de que não havia militares nos órgãos citados, porém é possível localizar servidores originários da Marinha e Aeronáutica nas listas enviadas pelos órgãos de lotação, como mostra o levantamento consolidado. Já o Exército limitou-se a recomendar a consulta aos diários oficiais para obter a informação, e somente após recurso à Controladoria-Geral da União (CGU) forneceu uma lista com os militares da ativa cedidos a outros órgãos no momento. A simples referência ao Diário Oficial da União (DOU) sem indicação de data e página para consulta não é uma resposta satisfatória nos parâmetros da LAI.
Há, ainda, situações como a do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que informou ter encaminhado o pedido para cada superintendência regional se manifestar, sendo que nem todas responderam à solicitação, de modo que os dados informados são parciais. Posteriormente, o órgão enviou resposta complementar por e-mail indicando que nas demais unidades não há militares nem da ativa nem da reserva. Via assessoria de imprensa, o Incra justificou que, “embora a Coordenação-Geral de Gestão de Pessoas disponha das informações gerais dos servidores em seus registros, a unidade entendeu ser prudente consultar as superintendências regionais, visto que as informações são atualizadas pelas superintendências e poderia haver alguma informação funcional desatualizada nos registros da unidade central”, pois as superintendências regionais têm autonomia administrativa prevista em estatuto.
Conforme determina o artigo 31 da lei federal 13844/2019, a consolidação correta dos dados de pessoal no governo federal é obrigação do Ministério da Economia (ME), responsável pela “coordenação e gestão dos sistemas de planejamento e orçamento federal, de pessoal civil, de organização e modernização administrativa, de administração de recursos de informação e informática e de serviços gerais”. Segundo o ME, seriam 51 os militares na gestão socioambiental, quase metade do identificado cruzando os diferentes pedidos. Um novo pedido de informação foi submetido ao ME solicitando esclarecimentos, oportunidade na qual o órgão reiterou a informação prestada inicialmente, com a ressalva de que os dados remetem à situação funcional em junho de 2020, o que explica boa parte das divergências encontradas no levantamento, como se verificou a partir da consulta aos portais de transparência.
Para o advogado Bruno Morassutti, cofundador da agência Fiquem Sabendo, o fato de os pedidos serem recebidos e analisados em momentos diferentes pode explicar a divergência, ao mesmo tempo em que seria um indicativo de alta rotatividade nos cargos diante da discrepância significativa verificada. “Isso já seria um fator negativo no dia a dia da administração pública, pois toda mudança de pessoal gera alguma ineficiência burocrática pelo simples fato de que a pessoa nova precisa se adaptar à rotina do órgão.“Por outro lado, é possível que os números sejam diferentes porque os registros não são confiáveis, o que causa preocupação”, observa Morassutti.
Militares em todo o governo
Em julho, a agência Fiquem Sabendo publicou na newsletter Don’t LAI to me a lista de militares em todos os ministérios, enviada via Lei de Acesso à Informação (LAI) pelo ME. No total, 254 militares haviam sido empregados em cargos comissionados do governo Bolsonaro até então, conforme respostas obtidas via LAI. Mas de acordo com um levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) divulgado pelo portal Poder360 também em julho, os membros das Forças Armadas em cargos civis no governo Bolsonaro são mais de 6 mil. O contingente dobrou em comparação a 2016, o que revela a intensificação da presença de militares na atual gestão.
A crescente militarização da administração pública brasileira foi tema do discurso de Michelle Bachelet na abertura do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), em setembro. A alta comissária da ONU mencionou o Brasil ao lado de nações como México e El Salvador no que classificou como “um envolvimento crescente dos militares em questões públicas e de aplicação da lei.”