[Coluna 25]: Dados pessoais e monitoramento de redes sociais pelo governo de São Paulo

Em 25 de janeiro deste ano, o governo do estado de São Paulo publicou um edital de licitação de R$ 15 milhões para contratação de serviço de comunicação que inclui o monitoramento de redes sociais e veículos on-line. Uma das entregas é descrita como “[p]rincipais influenciadores (detratores e apoiadores) em fichas individualizadas” (p. 40).

O edital solicita também o monitoramento de temas mais mencionados por usuários, a classificação dos comentários de acordo com o sentimento que expressam (neutros, positivos ou negativos), entre outros. Esse tipo de política, que tem se tornado cada vez mais comum, suscita vários questionamentos de ordem ética e legal que deveriam ser feitos, especialmente à luz da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

A LGPD é importante neste caso porque regula o tratamento de dados pessoais realizado em território nacional, tanto por parte do setor público, quanto da iniciativa privada. O monitoramento de comentários em redes sociais e a produção de fichas individualizadas, entre outros, envolvem tratamento de dados pessoais.

A primeira questão, portanto, é: até que ponto os comentários de cidadãos em redes sociais e veículos on-line são dados pessoais passíveis de proteção pela LGPD? O artigo 4º da Lei apresenta as exceções para a sua aplicação: os tratamentos de dados para fins jornalísticos, e exclusivamente para fins de segurança pública, defesa nacional, segurança do estado ou atividades de repressão e investigação penal.

O governo do estado de São Paulo pode eventualmente argumentar que tal monitoramento pode auxiliar a segurança pública ou do estado, ou repressão e investigação penal. Contudo, o escopo do edital torna evidente que esse não é o fim exclusivo do tratamento de dados e, portanto, a exceção da LGPD não se aplica.

Similarmente, embora o edital seja para serviço de comunicação, o objetivo não é a produção de material jornalístico, como fica evidente, por exemplo, ao requerer: “espaço de inteligência dotado de visão integral e intersetorial, a Sala de Situação parte da análise e da avaliação permanente do cenário do Governo do Estado de São Paulo para atuar como instância integradora de informação, constituindo assim um órgão de assessoria direta” (p. 41).

Estabelecida a pertinência da LGPD para o trabalho a ser feito, cabe perguntar: este serviço é compatível com a LGPD?

A Lei estabelece as condições sob as quais o tratamento de dados pessoais pode acontecer. A primeira hipótese é mediante o consentimento do titular. Segundo o § 4º do art. 8º, “O consentimento deverá referir-se a finalidades determinadas, e as autorizações genéricas para o tratamento de dados pessoais serão nulas”.

Parece difícil imaginar como o monitoramento das manifestações sobre órgãos do governo em veículos e redes sociais poderia ser feito com consentimento do titular. Como o consentimento genérico não é válido, isso significa que mesmo que o titular tenha consentido que o veículo exponha sua manifestação on-line, isso não implica que consentiu em ter seu dado analisado e comparado com de outras pessoas por terceiros, ou ter sua opinião pessoal classificada.

Obviamente, a empresa pode analisar os dados de forma anonimizada, que é uma das condições que possibilitam o tratamento de dados, pela LGPD, sem o consentimento do titular.


O que são dados públicos?

Outra exceção prevista pela Lei é: “É dispensada a exigência do consentimento previsto no caput deste artigo para os dados tornados manifestamente públicos pelo titular”( art. 7, § 4º). Como o objeto do contrato são opiniões emitidas em redes sociais e veículos on-line, cabe a questão: uma opinião publicada em um veículo on-line constitui um dado tornado manifestamente público pelo titular? E quanto a uma publicação em rede social?

Faz sentido, parece-me, considerar uma publicação em rede social sem restrição de acesso (post público) como uma opinião manifestamente tornada pública pelo titular. Há, contudo, uma série de outras situações em que isso não é óbvio. Um comentário em veículo com acesso restrito a assinantes é, ainda assim, uma manifestação pública? E se um usuário quiser que seu post seja aberto para todos os membros de uma rede social, mas não fora dela? Ainda assim esse post pode ser considerado público? Se um usuário apagar sua conta ou seu post, após ele ter sido coletado pela empresa, seus dados ainda deveriam ser considerados públicos?

São perguntas para as quais, hoje, não temos respostas claras. Meu entendimento, pelo princípio da autodeterminação informativa da LGPD, é de que as respostas seriam negativas. Para que o cidadão possa controlar seus dados, ele deve ter o poder de revogar a qualquer momento seu consentimento ou o caráter público de uma informação, e isso deve ter efeito em cascata para todos os operadores daquela informação.

De todo modo, independente de serem considerados públicos ou não, a LGPD resguarda os direitos do titular, como direito de acesso aos dados, confirmação de tratamento, revogação de consentimento na hipótese de descumprimento da Lei, entre outros.


Dados sensíveis

O edital, como mencionado, solicita como entregável os “perfis dos principais influenciadores (apoiadores e detratores) em fichas individualizadas”. No entanto, a LGPD definiu “opinião política” como dado sensível. As dispensas de consentimento previstas para dados pessoais em geral (como dados manifestamente públicos) não valem para dados sensíveis.

De fato, a LGPD veda o tratamento de dados sem o consentimento do titular, “de forma específica e destacada, para finalidades específicas” (art. 11, inciso I). Há exceções para se exigir o consentimento do titular, mas nenhuma delas se aplica aqui. Pode-se argumentar que talvez se aplicasse a alínea b do inciso II do art. 11: “tratamento compartilhado de dados necessários à execução, pela administração pública, de políticas públicas previstas em leis ou regulamentos;”. Entretanto, como não há lei ou regulamento tornando necessário esse monitoramento, não cabe esta exceção.

Neste caso, há evidente abuso do que deve ser entregue, em flagrante desrespeito ao previsto na LGPD.

Monitoramento e democracia

Há um problema mais geral nesse tipo de serviço por parte de um governo democrático: o de saber até que ponto é desejável para um governo democraticamente eleito monitorar os seus cidadãos. Sabemos o que estados autoritários fazem, como a China, com consequências terríveis para a capacidade dos cidadãos de não serem submetidos à vontade dos governantes da vez.

Causa espécie que edital de tamanho montante, com graves questões éticas, tenha vindo a público sem maiores discussões com a sociedade paulista. Não houve discussão nem mesmo nos fóruns reconhecidos como tal pelo governo do estado de São Paulo, como o Conselho de Transparência da Administração Pública.

A LGPD, ao estabelecer o princípio da autodeterminação informativa e regular a proteção de dados pessoais, tanto para o setor privado quanto o setor público, procurou salvaguardar o cidadão de abusos como esses. Que serviços estejam sendo planejados e recursos investidos para violar a Lei mostra que será bem difícil garantir seu cumprimento. Que esse exemplo sirva de alerta para a necessidade de debatermos essas questões, para que possamos endereçá-las a contento.


Manoel Galdino
Diretor-executivo da Transparência Brasil