[Coluna 24] Erros na interpretação do Índice de Percepção da Corrupção

A Transparência Internacional divulgou seu Índice de Percepção da Corrupção (IPC) de 2019. É um dos índices mais conhecidos e utilizados no mundo para comparar a corrupção entre países. Ao chamar a atenção para um problema sério como a corrupção e, no caso do Brasil, mostrar como estamos abaixo no ranking deles, contribui para redobrar os esforços para enfrentar esse problema sério.

Não por outro motivo, jornais usuários nas redes sociais não demoraram a divulgar e interpretar o índice como se ele mensurasse, de fato, a corrupção real. A própria Transparência Internacional, em divulgação via Whatsapp, caracterizou o índice como sendo uma “avaliação do nível de corrupção no setor público”. Nesta coluna, discuto em mais detalhes até onde o IPC pode ser usado corretamente, e quais seus limites e problemas.

 

Percepção eurocêntrica

Comecemos pelo óbvio. Um índice de percepção mede apenas a percepção de um fenômeno, não o fenômeno em si. Na verdade, o IPC é resultado da média de várias medidas distintas, produzidas em diferentes contextos e algumas mais objetivas que outras. Porém, como o IPC não utiliza a metodologia estatística adequada para agregar esses indicadores diversos, o resultado final acaba sendo apenas um índice de percepção de corrupção.

Outro problema do índice é utilizar fontes diferentes, cada uma com sua definição ou recorte específico do conceito de corrupção. No fim das contas, não é possível saber de que tipo de corrupção estamos falando. A corrupção pode variar em termos do setor em que ocorre, dos atores envolvidos (políticos, servidores públicos, membros de outros poderes que não o Executivo), do impacto que tem (se localizado ou geral) e do grau de formalização (se sistemática ou ocasional e esporádica).

Para ser mais concreto, consideremos alguns exemplos de corrupção. Em muitos países, é preciso pagar propina para se tirar um simples documento (como nossos equivalentes ao RG ou CPF), ou para pelo menos acelerar o processo de expedição dos documentos. Essa seria uma corrupção administrativa, entre servidores de baixo escalão, sistemática e de baixo impacto – posto que não altera políticas públicas, apenas aumenta o custo da prestação do serviço e gera ineficiências.

Embora tenhamos corrupção para algumas licenças e para emissão de CNH, documentos mais básicos como certidão de nascimento, carteirinha do SUS ou RG não envolvem corrupção. Então, esse é um tipo de corrupção que não vemos aqui. Um tipo de corrupção mais comum no Brasil é o desvio de recursos públicos por meio de fraudes em compras públicas. É de alto impacto, na esfera administrativa, envolvendo tanto servidores como políticos, além de sistemática.

Considere, porém, a corrupção que acontece em países desenvolvidos, onde leis são aprovadas para receber dinheiro sujo oriundo de esquemas de corrupção em países em desenvolvimento – pense, por exemplo, nos casos de corrupção internacional envolvendo grandes times de futebol europeus, ou mesmo nos escândalos envolvendo a alemã Siemens.

O impacto na economia local é, possivelmente, positivo – pois capital é trazido para o país –, e o impacto negativo ocorre nos países menos desenvolvidos – de maneira sistemática, na esfera política e geralmente envolvendo o Executivo. Em si, esse processo já é menos perceptível ao cidadão local no país desenvolvido, uma vez que as consequências da atividade corrupta não são sentidas por ele.

O IPC não apenas não diferencia essas medidas, como tende a subestimar o último tipo de corrupção mencionada. É baseado na opinião de empresários, de empresas multinacionais, com formação e identidade predominantemente ocidental. Ademais, são eles mesmos os beneficiários desse tipo específico de corrupção, portanto dificilmente verão a si mesmos como corruptos. Em uma palavra, é um índice eurocêntrico.


Avanços e retrocessos não se refletem no índice

De acordo com o relatório da Transparência Internacional, a nota dos países é baseada na média da nota de até 13 fontes de dados diferentes, que medem de maneira diferente a corrupção nos países.

Como toda estimativa quantitativa a partir de uma amostra, é necessário quantificar a incerteza da estimativa; simplificando um pouco, é preciso calcular a margem de erro. A forma como a Transparência Internacional faz isso hoje corrige alguns dos problemas metodológicos mais óbvios que havia antes de 2017 –  como não corrigir o erro padrão para amostras pequenas. Ainda assim é problemático, pois assume uma distribuição normal em lugar da distribuição t de Student, mais adequada a amostras pequenas. Além disso, supõe que os índices que compõem o IPC são independentes entre si, quando não são.

De todo modo, deixando de lado esse problema, e tomando pelo valor de face o cálculo da incerteza do IPC, é possível que o Brasil tenha uma nota entre 43 e 27, considerando 90% de confiança, segundo os dados deles. O que isso poderia significar em termos de ranking? Para responder a essa pergunta, simulei 1.000 cenários, variando a posição de cada um dos 180 países de acordo com a nota e erro padrão reportado por eles. Como resultado, verifiquei que o Brasil poderia estar estar na posição 75ª do ranking (31 posições à frente do atual 106º lugar) ou em 146º lugar, 40 posições atrás. E com 95% de confiança, o Brasil está entre 86º e 131º.

Reportar o ranking, como faz a Transparência Internacional, sem considerar a margem de erro – o contrário do que fiz acima – seria mais ou menos equivalente a analisar pesquisas de opinião sem olhar para as margens de erro.

Outro problema está na interpretação da variação anual do índice. Não houve alteração na nota do Brasil de um ano para outro. Segundo o diretor-executivo da Transparência Internacional do Brasil em entrevista à Folha de São Paulo, o resultado “reflete poucos avanços e muitos retrocessos na luta contra a corrupção”. Entretanto, se há muitos retrocessos e poucos avanços, a nota deveria ter caído, não permanecido estável. Ou bem o índice não mede o saldo líquido negativo entre avanços e retrocessos, ou o saldo líquido é o mesmo e eles não acreditam no próprio índice.

O índice é inútil?

Diante de tantos problemas, vale a pena perguntar: o índice é inútil? Longe disso. Os melhores indicadores objetivos de corrupção em países que conheço foram desenvolvidos para os países da União Europeia, com base em dados de compras públicas. Sabe-se que licitações com apenas um concorrente, sem ampla divulgação e com prazos apertados, por exemplo, estão correlacionadas com ocorrência de corrupção.

Fazeka e co-autores desenvolveram um índice de corrupção com base nesses indicadores objetivos. Quando analisado com o IPC de 2013, acharam uma correlação de 66% para os países da UE + Noruega. Então, na ausência de dados melhores, o IPC pode ser utilizado como uma primeira aproximação sobre os níveis de corrupção de um país. Contudo, sabemos que a variação entre anos tende a ser baixa, e há pouca evidência sobre como o índice se correlaciona com corrupção real em países fora da Europa.

Em outro estudo com metodologia similar, sobre corrupção em contratos do Banco Mundial com dinheiro de ajuda externa para cerca de 100 países, os autores encontraram uma correlação bem mais baixa entre a medida objetiva de corrupção e o IPC, chegando a apenas 20% de correlação. É claro que a corrupção em contratos do Banco Mundial é diferente da corrupção em geral dentro um país. Mas isso ilustra como, ainda que útil, o IPC não deve ser interpretado acriticamente.

O IPC ajuda também a reforçar a atenção para a necessidade de esforços anti-corrupção, especialmente importantes em um país como o Brasil, e mais ainda no contexto atual. Nesse sentido, não se pode desvalorizar o IPC como sendo inútil, quando ele claramente traz benefícios reais. Precisamos apenas ter clareza de que ele não é um indicador objetivo de corrupção.


Manoel Galdino
Diretor-executivo da Transparência Brasil