De 7 de abril a 17 de junho, somente 39% dos quase R$ 13 milhões em serviços e materiais contratados pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio) para conter a Covid-19 e seus efeitos foram liquidados, ou seja, se concretizaram. O dado aparece em levantamento da Transparência Brasil sobre o uso dos créditos extraordinários abertos em favor da FUNAI e do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos para ações contra a pandemia.
Enquanto isso, até 18 de junho foram registradas 332 mortes de indígenas por Covid-19 e 7.208 casos, atingindo 110 povos na plataforma Quarentena Indígena, mantida por organizações indígenas e indigenistas. Estudo da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e do Ipam (Instituto de Pesquisa da Amazônia) divulgado nesta segunda-feira (22) mostra que a taxa de mortalidade da doença entre indígenas na Amazônia Legal é 150% maior do que a média nacional.
Os dados usados no levantamento estão disponíveis no portal Achados e Pedidos, que desde o início do ano tem como um de seus focos a transparência de dados socioambientais.
Com recursos e estrutura já precários, a FUNAI aplica os recursos emergenciais ao pé da letra: com uma abordagem assistencialista, cuja prioridade é cobrir necessidades imediatas. Os gastos servem pouco à criação de estruturas e de condições sustentáveis para enfrentamento da pandemia junto a povos indígenas.
O maior volume de recursos (32%) foi reservado à compra de alimentos e cestas básicas para serem distribuídos a comunidades vulneráveis. Desse montante, 81% foram entregues à FUNAI, ou seja, liquidados. Não foi possível saber com precisão se todas as cestas e alimentos entregues chegaram às comunidades; as únicas informações disponíveis em transparência ativa, encontradas em materiais de divulgação da FUNAI e do Ministério dos Direitos Humanos, são parciais.
Em segundo lugar, aparecem compras de veículos (21% do total reservado). A maioria (93%) são caminhonetes que, segundo a descrição no Portal da Transparência, serviriam para levar os suprimentos aos destinos. Nenhuma delas foi entregue até o momento. O fornecedor é uma empresa de Catalão (GO), distante cerca de 650 km da Coordenação Regional mais próxima à qual se destina parte da compra (Xavante, MT).
A maioria dos recursos empenhados (84%) sai do crédito extraordinário de R$ 18.340.000 aberto para a FUNAI por meio das Medidas Provisórias 942 e 965. Os outros 16% têm origem no crédito extraordinário de R$ 45.000.000 aberto para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos via MP 942.
A Coordenação Regional de Manaus (AM) empenhou o maior volume de recursos, mas apenas 1/3 deles foi liquidada. A CR Interior Sul, em Santa Catarina, tem o segundo maior volume de recursos empenhados.
Baixe a íntegra do relatório “Uso de recursos federais contra a Covid-19 junto a povos indígenas”
Transparência com obstáculos
Chegar à resposta a perguntas básicas como “em que o dinheiro está sendo usado?” ou “para quais estados as verbas estão indo?” em relação aos gastos do governo federal com o combate à pandemia entre povos indígenas é um verdadeiro desafio para cidadãos.
Embora o Portal da Transparência do governo federal seja um bom exemplo em transparência ativa, ele está longe de cumprir o determinado pelo Art.8º, §3º da Lei de Acesso a Informação (“[Os sites oficiais devem] conter ferramenta de pesquisa de conteúdo que permita o acesso à informação de forma objetiva, transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão”). Obter informações mais específicas ainda exige uma boa dose de persistência e, principalmente, de conhecimento prévio do cidadão.
Usar a consulta dos gastos com a Covid-19 disponibilizada no site, por exemplo, para ver quanto e como o governo federal gasta para combater a pandemia entre povos indígenas exige os seguintes passos:
- Saber em qual dos links listados na página clicar;
- Se escolher o mais óbvio, ou seja, o Painel da Ação 21C0 – Enfrentamento da Emergência de Saúde Pública Decorrente do Coronavírus, o cidadão tem acesso a uma visão geral dos gastos.
- Para saber quais gastos se referem a ações voltadas para a população indígena, tentará clicar em “Detalhar execução das despesas da ação orçamentária”. O cidadão chega a mais detalhes, mas não consegue aplicar nenhum outro filtro (por órgão ou por estado, por exemplo).
Se não tiver desistido a essa altura, o cidadão pode voltar à notícia que contém os links de consulta e clicar no “Consulte a execução financeira em Despesas Públicas” (talvez depois de tentar os outros links, que levam a outras ações orçamentárias relacionadas ao combate à pandemia).
- Nessa tabela, enfim, o cidadão consegue filtrar por órgão (o cidadão deve deduzir que a FUNAI é o mais provável. Ainda assim, não há certeza de que esses são todos os gastos relacionados a populações indígenas) e por localidade de aplicação (mas não é possível ver todas as localidades de aplicação de uma vez, para comparar)
- Clicar em “Consultar”
- Para ver os totais, o cidadão deve rolar até o final da tela, onde deve selecionar o gráfico que deseja ver (depende de ele conhecer os jargões da administração pública, como as fases da despesa)
Tudo isso para obter dados com 1 mês de defasagem; em 17 de junho, as informações exibidas se referiam apenas até maio.
Obter dados atualizados e suficientes para verificar os detalhes dos gastos (origem do dinheiro, o que foi comprado, tipo de licitação usado, empresas contratadas etc.) depende de paciência e conhecimento ao menos intermediário de manuseio de planilhas, capacidade de desenvolver “robôs” ou de usar APIs.