O que o pavoroso crime no sertão piauiense tem a ver com malversação do dinheiro público

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Castelo do Piauí é o triste retrato do Brasil onde ninguém é responsável nem responsabilizado pela miséria, que se perpetua pelas gerações e que se mostra de diferentes formas — a mais cruel se expressa no ataque grotesco ao outro, como ocorreu no caso de tentativa de feminicídio.

No fim de maio a minúscula cidade de Castelo do Piauí, no sertão norte do estado mais pobre do país, foi cenário de um crime grotesco. Quatro garotas entre 15 e 17 anos foram raptadas, estupradas, apedrejadas e lançadas de um penhasco por quatro rapazes da mesma idade, secundados por um homem de 40 anos.

Nos jornais, a descrição do impacto do crime sobre os corpos das garotas envolve expressões como “afundamento da face”, “esmagamento do crânio”, “fragmentos de ossos na cabeça”.

Como ao que ocorre no sertão piauiense em geral é dada pouca importância, o caso apenas na semana passada se espalhou para fora de seus rincões. Ao lê-lo, a primeira coisa que me veio à mente foi como o machismo ainda impera no país; como homens, mesmo ainda jovens, se acham no direito de dispor dos corpos das nossas mulheres e subjugá-los a todo tipo de agressão; como a Lei no 13.104/2015, que tipifica o chamado “feminicídio”, é importante – apesar de conservadores julgarem-na “uma proposta extravagante”. Coisa semelhante ao que pensei disse a ONU Mulheres, em nota na qual sublinha que mulheres sofrem cerca de “50 mil estupros e 5 mil assassinatos por ano no país [motivados por questão de gênero]”.

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Aí o bom jornalismo entrou em ação e me trouxe a história dos jovens criminosos. B.F.O, G.V.S., I.V.I e J.S.R têm em comum o fato de terem largado a escola e serem semi-analfabetos; morarem em barracos miseráveis na periferia de uma das cidades com piores IDHs do país; terem famílias desestruturadas com histórico de doenças mentais, abandono e alcoolismo; terem diversas passagens pela polícia e serem usuários de drogas.

Não se trata de relativizar suas culpas ou desejar o abrandamento de suas penas. Apenas creio que essa história cruel e triste é um caso exemplar da miséria brasileira em todas as suas facetas.

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Familiares dos jovens assassinos

Castelo do Piauí tem um dos piores PIBs per capita do país (2012): R$ 4.913,49, o que a deixa na 4855o posição no ranking dos 5570 municípios brasileiros. Como as transferências federais em 2014 foram de R$ 32.199.843,11, e as estaduais foram de R$ 2.837.305, isso significa que o equivalente a 1/3 do PIB vem de repasses – dos quais 20% são referentes a recursos do Bolsa Família. Ou seja, é um município bastante pobre.

A essa constatação, reforçada pelo dado de que se trata de um dos piores IDHs do país, a pergunta natural é: onde o poder público aloca o dinheiro?

Para minha surpresa, a prefeitura da cidade tem um portal de transparência. Ali, dá para ver a alocação de despesas. Passeando rapidamente pelos gastos, há algumas coisas que provocam interesse.

  • A primeira delas é que R$ 672.514 foram, em 2014, para o Auto Posto São José LTDA, CPNJ 69.597.433/0002-53, cujo dono é um sujeito chamado Antonio Lima Martins Junior, CPF 022.020.063-70. Se considerarmos que o litro da gasolina é, na região, cerca de R$ 3,30, e que cada litro faz 10 km, isso significa que a frota da prefeitura rodou 2.037.921 km em um ano. A distância equivale a 32 viagens diárias a Teresina em 365 dias; ou, algo igualmente improvável, a cinco viagens de carro até a lua… Por muito menos, outras prefeituras piauienses já tiveram de se explicar.
  • Antonio Lima Martins Junior, o dono do posto, na verdade é o “doutor” Antonio Lima Martins Junior, advogado do prefeito da cidade – e, como ambos têm dois sobrenomes idênticos, provável parente.

Se alguém é responsável pelo desenvolvimento de Castelo do Piauí no período democrático, seu nome é José Ismar Lima Martins, o “Zé Maia”. Ele foi prefeito da cidade quatro vezes – 1983-1988, 1993-1997, 2001-2005, 2005-2008 – e se segura no quinto mandato (2013-2016).

“Se segura” porque foi cassado em abril por compra de votos, abuso de poder econômico e conduta vedada a agente público, e o recurso não foi conhecido no TSE na semana passada. FYI: em 2012, o prefeito declarou patrimônio de R$ 1.563.577 – incluindo quase R$ 500 mil na poupança.

  • Adicionalmente, a Câmara de Vereadores da cidade abocanhou R$ 1.008.068 em 2014 – o equivalente a 1% do PIB de 2012 corrigido pela inflação. A relação é semelhante ao que o Piauí gasta com sua Assembleia Legislativa, mas muito mais alta do que outros estados com IDH muito mais alto gastam proporcionalmente com suas casas.
  • Uma mulher chamada Ana Célia Ferreira Odorico recebeu em 2014 R$ 274.604,60; neste site de homologação de concursos, registra-se que ela (ou sua homônima, numa população de 18 mil habitantes) é gari da prefeitura de Castelo. Talvez haja uma explicação razoável para o salário astronômico – quase 30 vezes uma renda mensal de salário mínimo.
  • Por fim, R$ 525.802 foram para a empresa Disk Palco, especializada em aluguel de andaimes e de palcos e serviços de organização de eventos. Apesar de manter há dez anos um evento anual chamado Cachaça Fest, não deixa de ser intrigante pensar como e por que uma prefeitura pobre gastou 2% de todos os repasses federais nisso.

O desempenho educacional dos estudantes de Castelo do Piauí não é especialmente sofrível — é tão ruim quanto no resto do país. Mas quando perguntam aos professores da cidade por que os alunos vão mal, a resposta que aparece pontuando mais do que no resto do país ou na média do estado é “o meio em que o aluno vive”. Para os professores a situação de miséria plena provoca esse círculo vicioso, no qual a degradação familiar e social retroalimenta coisas como abandono escolar e refúgio nas drogas. Não se sabe ao certo quantas escolas há na cidade (já falaram 45 e 52), nem qual é o investimento real que se faz nelas. Mas certamente há um problema aí a ser explorado e resolvido.

Castelo do Piauí é o triste retrato do Brasil onde ninguém é responsável nem responsabilizado pela miséria, que se perpetua pelas gerações e que se mostra de diferentes formas — a mais cruel se expressa no ataque grotesco ao outro, como ocorreu no caso de tentativa de feminicídio. Enquanto nossas cidades forem administradas com interesses outros que não a erradicação da miséria, não há grito, choro ou panaceia jurídica (redução-da-maioridade-penal) que possa dar jeito.