Quem acompanha o noticiário sabe que vários estados brasileiros encontram-se em grave crise econômica. Dificuldade para pagar as contas, atrasos salariais e descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) são alguns dos problemas desses estados. Uma das razões para tal descalabro é, por óbvio, as falhas do sistema de controle em coibir corrupção e ineficiência governamental.
Não por outro motivo, tem havido críticas pela baixa eficácia dos Tribunais de Contas estaduais em evitar a crise fiscal dos estados. Dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) [1] indicavam que, em 2018, treze estados estavam com notas insuficientes – ou seja, não poderiam contrair empréstimos com a União por baixa capacidade de pagamento – e Minas Gerais não tinha sequer disponibilizado todos os dados para serem classificados. Não há notícia, porém, de que os TCEs tenham reprovado as contas destes governos estaduais.
Como a própria Transparência Brasil já mostrou, os Tribunais de Contas sofrem vários problemas. Muitos conselheiros são indicados em desrespeito à lei – não cumprem os requisitos de reputação ilibada e idoneidade ou saber notório etc. Custam muito aos cofres públicos – em alguns casos chegando a custar mais de 80% do gasto com as Assembleias Legislativas estaduais – e entregam pouco em termos de controle. Tudo isso bem documentado em dois relatórios nossos, o último datado de 2016.
Em artigo no começo de 2019, o economista Marcos Lisboa criticou a atuação dos Tribunais de Contas na questão fiscal dos estados e municípios, e defendeu a extinção das cortes de contas. Sob o argumento de que a medida economizaria dinheiro – em 2015, o gasto total dos TCEs representava 57% do custo total das 27 Assembleias Legislativas –, defendeu substituí-los por auditorias privadas.
As causas raízes dos problemas com os Tribunais de Contas
Para resolver os problemas do estado brasileiro, é preciso em primeiro lugar fazer um diagnóstico das causas raízes dos problemas, e não apenas olhar para os sintomas. Não se deve “jogar o bebê fora junto com a água do banho”, como sugerem alguns críticos mais afoitos.
A Constituição Federal, no seu artigo 71, estabelece que é papel dos Tribunais de Contas emitir parecer prévio sobre as contas do Executivo, anualmente, mas quem as julga é o Legislativo estadual. Defendem-se os membros dos TCEs, portanto, com o argumento de que, a despeito de ressalvas, alertas e parecer pela reprovação, os Legislativos de estados e municípios podem não seguir o parecer do Tribunal. É verdade que em muitos municípios isso ocorreu. Mas não no nível dos estados.
Tomemos o caso do Rio Grande do Sul, um dos estados com nota D pela STN (pior nível), para entender parte do problema. De acordo com dados de 2016 da STN, o estado do Rio Grande do Sul ultrapassou os limites da LRF. Qual seria o papel do Tribunal de Contas do Estado neste caso?
A LRF, em seu artigo 19, define de forma clara quais os limites para gastos com pessoal e, inclusive, o que não deve entrar no cômputo desta rubrica. Por exemplo, gastos como indenização por demissão de servidores e gastos com plano de demissão voluntária estariam fora da conta.
Quem fiscaliza o cumprimento da LRF nos estados são os Tribunais de Contas dos Estados. Porém, como a autonomia federativa permite a cada estado adotar critério diferente da STN, não há um entendimento comum sobre o que entra no cômputo de gasto pessoal. Não conheço dados recentes sistematizados sobre os entendimentos de cada ente federativo, mas em 2007, no âmbito do Programa de Modernização do Sistema de Controle Externo dos Estados, Distrito Federal e Municípios Brasileiros (Promoex), Lei nº 11.131, de 2005, dez Tribunais de Contas estaduais informaram adotar critérios divergentes em relação à STN. As cortes de contas excluíam gastos com Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF), inativos e/ou pensionistas [2].
No caso do RS, a interpretação dos conselheiros foi contrária à área técnica do órgão, que defendeu a inclusão do IRRF [3]. O próprio TCE-RS, no parecer das contas de 2017, reconhece que, pelos cálculos da STN, os gastos com pessoal no estado estariam acima do limite de 60% de comprometimento da receita corrente líquida, estabelecido pela LRF. No entanto, feitas as exclusões acima mencionadas, este percentual é de 55%.
Assim, em abril de 2019, o TCE-RS aprovou parecer prévio favorável à aprovação das contas de 2017 do governo estadual. Este caso, porém, está longe de ser o único. Problemas similares são encontrados em outras legislações, como por exemplo leis que regulam gasto mínimo com educação e saúde, sendo frequentes as interpretações lenientes sobre gastos dessas rubricas.
Como tornar os Tribunais de Contas mais efetivos?
Parece natural pensar que a solução para nossos problemas estaria em retirar o caráter político dos Tribunais de Contas. Auditores concursados, com alguma frequência, defendem que eles deveriam ser os conselheiros. Mesmo na Assembleia Constituinte, que redefiniu o papel dos Tribunais de Contas, houve quem defendesse selecionar os conselheiros por concurso.
O problema está, porém, em outro lugar. O Tribunal de Contas, no Brasil, segue um modelo de controle externo que vem da França Napoleônica. Entre várias características deste modelo, destaca-se a ênfase no controle de legalidade. O papel principal do controle externo é verificar conformidade legal dos atos administrativos, sem se preocupar em avaliar o desempenho das políticas públicas.
Já nos órgãos de controle externo da tradição Westminster, seguida em países como Inglaterra e Estados Unidos, o objetivo principal do controle externo é avaliar desempenho, o chamado “value for money”. Essa diferença de objetivos é, ao meu ver, uma das principais explicações para a diferença de efetividade dos órgãos de controle entre países.
Em primeiro lugar, se o objetivo do controle externo é fazer recomendações de como tornar políticas públicas mais custo-efetivas, não há necessidade de sanção ou punição para quem descumpre a lei. Logo, julgamentos não existem e deixa de ser um problema a nomeação política de conselheiros.
Em segundo lugar, se a ênfase é na avaliação do desempenho, é muito importante que o órgão de controle tenha acesso aos dados necessários e que seja qualificado tecnicamente para entender de políticas públicas, com servidores de perfil diverso. O controle de legalidade, por outro lado, demanda um conhecimento técnico das leis, por óbvio, mas também a capacidade de avaliar quando um julgamento encontra legitimidade política, já que os conselheiros têm atuação política. Em suma, os modelos distintos criam incentivos para perfis diferentes dos dirigentes.
Em terceiro lugar, o modelo Westminster torna a independência um fator mais crítico. Por ser mais técnico, acaba tendo menos respaldo político e, se não tiver sua autonomia e independência garantidas, não será efetivo. Já os Tribunais de Contas, pelo caráter político, derivam sua autonomia tanto de garantias legais como da própria forma como são escolhidos os conselheiros, razão pela qual os políticos irão tomar cuidado com quem eles indicam para o tribunal.
Em quarto e último lugar, a efetividade do modelo Westminster depende da transparência nos resultados de suas auditorias e recomendações, para aumentar a chance de que as recomendações sejam seguidas. Como não há sanção, elas podem ser olimpicamente ignoradas pelo Executivo. Torna-se crítica, nesse modelo, a capacidade da imprensa, sociedade civil e oposição de acessarem os resultados das recomendações e poderem usá-las para produzir accountability. No modelo napoleônico, a efetividade dos órgãos de controle está mais associada às punições, que precisam ser cumpridas e terem poder dissuasivo. Assim, há mais espaço para falta de transparência entre análises técnicas das auditorias, pois o que aparentemente importa são as decisões dos conselheiros.
Um modelo não é necessariamente melhor que o outro, pois a depender das condições institucionais e da sociedade de cada país, podem funcionar melhor ou pior. Além disso, é possível adaptar os modelos, e hoje, cada vez mais, os Tribunais de Contas, por exemplo, fazem análise de desempenho, ainda que percentualmente muito menos que instituições como o Government Accountability Office nos EUA.
Agentes respondem a incentivos, e o equilíbrio resultante decorre dos incentivos. Se o incentivo é controlar legalidade, o sistema político irá atuar para limitar a atuação dos Tribunais de Contas, pois são decisões sobre legalidades dos atos dos políticos. Mudar a forma como conselheiros são indicados, ou mesmo substituir os Tribunais de Contas por auditorias privadas, não endereça a causa raiz da inefetividade dos TCs.
A tendência mundial tem sido destacar a importância de avaliação de políticas públicas, e os órgãos de controle podem ajudar nesse sentido. Vejamos o caso da LRF: mais importante do que saber se um estado a cumpriu é que a gestão econômica atinja os objetivos de promover desenvolvimento econômico no estado. O limite de 60%, no fundo, é só um indicador da real variável de interesse: uma gestão econômica cujos benefícios superem os custos – por exemplo, uma isenção fiscal não pode gerar atrasos em pagamentos por falta de receita.
Seria muito mais transformador reorientar o objetivo do controle externo para análise de desempenho em vez de controle de legalidade. Vários outros problemas dos Tribunais de Contas, que não tratamos aqui – como problema do Tribunal ser, ao mesmo tempo, acusador, julgador e instância recursal – seriam endereçados com essa mudança, pois não haveria sequer necessidade de sanção. Mudar nessa direção seria enfrentar a causa raiz da baixa efetividade do controle externo, ao invés de enfrentar apenas sintomas.
Manoel Galdino
Diretor-executivo da Transparência Brasil
[1] A Secretaria do Tesouro Nacional
classifica os estados segundo capacidade de pagamento em níveis de A a D, sendo que apenas estados com níveis A e B podem contrair empréstimos com a União. Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul tinham nota D, Minas Gerais não disponibilizou todos os dados e 11 estados contavam com nota C. Além disso, o relatório apontou que “Acre, Amazonas, Paraíba, Piauí, Paraná e São Paulo estão próximos de perder o seu rating B” (p. 45)..
[2]Os Tribunais de Contas Estaduais
do Espírito Santo, Goiás, Pará, Paraná, Rondônia, Roraima e Rio grande do Sul excluem despesas com Imposto de Renda Retido na Fonte para cálculo do limite estabelecido pela LRF. O TCE de Minas Gerais exclui despesas com pensionistas e inativos. OS TCEs de Amazonas, Goiás, Paraná e Rio Grande do Sul, além do TCM de Goiânia, excluem gastos com pensionistas.
[3]Informação da Consultoria Técnica nº21, de 2002, do TCE-RS, conforme apontado por estudo de consultor legislativo do Senado.