[Coluna 27]: Expedição de Pescaria em pedidos de acesso a informação

De acordo com uma reportagem recente da Agência Pública, órgãos do governo federal têm negado uma série de pedidos de acesso a informação sob a justificativa de que estes incorrem em uma prática chamada “expedição de pescaria” (fishing expedition). Afinal, o que vem a ser essa prática e por que ela é relevante para entendermos os riscos dessas negativas à transparência pública?

O que é a “expedição de pescaria”?

“Expedição de pescaria” ou “fishing expedition”, no original em inglês, designa a tentativa – em geral da polícia – de encontrar alguma informação incriminadora a partir de uma busca ampla sem determinar um objetivo específico.

Elas acontecem, por exemplo, quando se autoriza buscas genéricas em favelas, sem delimitar um endereço específico ou um objetivo para a busca. Por expor o cidadão ao abuso de poder, dificultar sua defesa e a proteção de sua intimidade e honra, são necessários limites para esse tipo de prática por parte do estado.

Caso completamente diverso, contudo, é o próprio estado alegar que não deve atender a pedidos de informações sob a alegação de que configurariam “expedições de pescaria”.

O algoritmo LAI

Para nós da Transparência Brasil, tudo se passa como se a Lei de Acesso a Informação (LAI) fosse um algoritmo simples e poderoso para determinar se um pedido pode ou não ser negado.

O algoritmo pode ser resumido da seguinte forma: i) verificar se o pedido se enquadra em algumas das exceções previstas na própria LAI (Arts. 23 e 31) e no decreto que a regulamenta (trabalho adicional etc.). Em caso negativo, ii) é preciso verificar se o pedido se enquadra em outras previsões de restrição de acesso presentes em outras legislações (como de sigilo comercial, bancário etc.). Não se enquadrando em nenhuma das hipóteses, a informação deve ser concedida integralmente e o processo se encerra.

Caso se enquadre em uma das hipóteses previstas pela LAI, ainda assim não é devido negar o acesso. É preciso checar mais uma condição: iii) o pedido envolve informações a respeito de violações de direitos humanos? Se sim, o acesso deve ser concedido integralmente. Se não, ainda assim não se pode negar o acesso, devendo antes verificar outra condição: iv) o pedido pode ser parcialmente atendido? Se sim, então deve-se dar o acesso parcial. E assim por diante, sempre procurando encontrar maneiras de ser transparente e garantir a publicidade. Somente após esgotadas todas as formas para contornar as restrições de acesso previstas explicitamente em lei (que são em número limitado e pequeno) é possível negar o acesso.

Ao colocar a restrição de acesso a informação como exceção, a LAI deixou bem evidente que só não deverá ser tornado público aquilo que for explicitamente sigiloso. O algoritmo deixa claro que a negativa só é cabível nas condições previstas pela legislação. Não é permitido inventar novas hipóteses, como “expedição de pescaria”, para justificar a opacidade.


Princípios não são absolutos

Ao analisar as fundamentações de algumas negativas apresentadas, verifiquei, aqui e ali, que pedidos qualificados como “expedição de pescaria” e negados tinham mais a ver com o princípio da eficiência da administração pública e da regulamentação da LAI no governo federal. Um suposto caso de “expedição de pescaria”, ao envolver um pedido considerado amplo e genérico, poderia gerar um custo muito elevado para a administração. Contudo, o problema nesse caso seria o trabalho adicional demandado, o qual deve ser pesado em relação ao benefício para a transparência pública, sendo completamente irrelevante saber se o pedido é ou não “expedição de pescaria”.

Um pedido pode ser “pescaria” e gerar pouco trabalho adicional, caso em que deve ser concedido (como exposto acima), ou pode não ser “pescaria” e gerar muito trabalho adicional, caso em que pode ser negado, talvez parcialmente. Em todo caso, o motivo da negativa não pode ser a suposta “pescaria”, mas o trabalho adicional, que também deve ser demonstrado explicitamente, e não simplesmente alegado ou mencionado. Por demonstração explícita, entendemos uma estimativa plausível do número de horas ou do custo de processamento para viabilizar o atendimento, sempre pensando em como tornar o custo aceitável para que se possa conceder o máximo de acesso possível à informação solicitada.


Inversão de papéis

A administração pública deve ser guiada por alguns princípios – estabelecidos pela Constituição Federal – como o da publicidade. Além disso, a LAI estabeleceu como diretriz para seu cumprimento a “observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção” (Art. 3º, inciso I). Isso significa que conceder informação é a regra, e que as negativas de acesso a informação só podem acontecer para casos de exceção expressamente prevista em lei. Inexiste, porém, quer na própria LAI, quer no decreto que a regulamenta no Executivo federal, exceção prevista para casos de “expedição de pescaria”. Dessa forma, quaisquer negativas com base nesse fundamento contradizem expressamente a lei.

Ademais, como aponta a matéria da Pública, a LAI proíbe que o agente público pergunte os motivos para a solicitação de acesso a informação (Art. 10, § 3º). Mesmo que o motivo seja “expedição de pescaria” por parte de um cidadão, isso é irrelevante para decidir se um pedido deve ou não ser atendido.

Essas alegações, em flagrante desrespeito à LAI, sugerem que o estado brasileiro está mudando seu compromisso com a transparência pública. Essa justificativa não era algo presente nos primeiros cinco anos da LAI. Analisei mais de 20.945 pedidos de acesso a informação nos níveis estaduais e municipais, enviados a todos os poderes, entre 2013 e 2017, disponíveis na plataforma da Transparência Brasil, Achados e Pedidos. Em nenhum dos pedidos havia qualquer resposta com menção à “pescaria” ou “fishing expedition”.

No nível federal, de acordo com a reportagem da Pública, entre 2015 e 2018, apenas 23 pedidos de acesso a informação foram negados com o argumento da “pescaria”. Em 2019, esse número foi de 45 – em um ano, praticamente o dobro do acumulado nos quatro anos precedentes. Esses dados sugerem, portanto, que a mudança na interpretação da LAI nesse sentido é um fenômeno recente.

A promoção da cultura da transparência – prevista na LAI – não está acontecendo. Ao contrário, a cultura do sigilo é que está se expandindo. É preciso, mais do que nunca, direcionar os esforços para evitar retrocessos na implementação da LAI. Já estão nos tirando tanto, querem nos tirar até o direito a informação?


Manoel Galdino
Diretor-executivo da Transparência Brasil