[Coluna 20] Em defesa dos partidos políticos

Na última segunda-feira, dia 09/12, participei de audiência pública no Supremo Tribunal Federal sobre candidaturas avulsas. Na oportunidade, fiz exposição contrária à possibilidade de candidaturas independentes. Nesta coluna, segue uma versão do que falei na audiência.

A Transparência Brasil é contra as candidaturas avulsas, por três razões: em primeiro lugar, não irá ajudar a aumentar a pluralidade de vozes representadas em nossa democracia, podendo mesmo até agravar a situação atual; em segundo lugar, porque partidos são importantes e precisam ser fortalecidos, não enfraquecidos. Por fim, permitir candidatura avulsa é estimular uma solução simplista: em vez de ir na raiz dos problemas optamos por soluções que apenas tornam a situação mais complexa e com novas complicações.

Candidaturas avulsas sem recursos públicos

Proponho que analisemos a questão das candidaturas avulsas em dois cenários hipotéticos. No primeiro cenário, temos que as candidaturas avulsas serão permitidas, mas todo o restante continuará como antes, do ponto de vista institucional. Na arena eleitoral, candidatos avulsos não terão direito a algo equivalente ao fundo partidário, nem ao fundo eleitoral. Terão tempo ínfimo no horário eleitoral gratuito da rádio e da TV. E terão de ser eleitos com mais votos do que os candidatos de partidos, pois devem ultrapassar, sozinhos, o quociente eleitoral.

Uma vez eleitos, situação similar ocorrerá na arena legislativa. O regimento interno das casas continuará a privilegiar partidos. Assim, eleitos avulsos terão peso ínfimo nos blocos parlamentares – que determinam, como sabemos, a composição das mesas e comissões permanentes; não terão o poder de pedir urgência na tramitação de projetos de lei, nem poderão usufruir dos demais poderes concedidos aos líderes partidários.

Que resultado podemos esperar de tal cenário? Em primeiro lugar, poucos candidatos avulsos conseguirão ser eleitos, posto que a competição será extremamente desigual. Apenas candidatos com nome e acesso a muitos recursos terão sucesso. Dadas as desigualdades de classe, gênero e raça do Brasil, o perfil dos eleitos dificilmente ampliará a diversidade dos políticos brasileiros. Na verdade, é de se esperar que o percentual de homens, brancos e ricos eleitos aumentem.

Poderiam estes, pelo menos, forçar alguma mudança nos comportamentos partidários? Para avaliar esse aspecto, é preciso ter em mente a pergunta: o que terá um líder partidário a temer? Nesse cenário, não se diminui o acesso a recursos públicos, nem o poder nas casas legislativas. Na verdade, no legislativo, o poder das lideranças partidárias poderá aumentar, já que os candidatos avulsos precisarão pedir às bancadas parlamentares para serem indicados para compor a mesa e as comissões. Em vez de democratizar os partidos, podem ter o efeito de concentrar poder nas lideranças.

É importante lembrar, também, que os partidos poderão lançar candidatos laranjas como avulsos e que estes, uma vez eleitos, migrarão para os partidos, ampliando suas bancadas. Não imaginem que as lideranças partidárias reagirão simplesmente mantendo o padrão de comportamento atual. Partidos são estratégicos.


Candidaturas avulsas com recursos públicos

No segundo cenário, parto da suposição de que haveria mais igualdade de condições de disputa, com maior distribuição de recursos públicos para as campanhas, bem como maior tempo no horário eleitoral gratuito.

O que podemos esperar? Em primeiro lugar, uma explosão no número de candidatos. Afinal, será destinado recurso público para cada cidadão que se dê ao trabalho apenas de registrar seu nome como candidato no Tribunal Eleitoral. Com o dinheiro, poderá ser montada uma grande lavanderia, na qual os recursos serão destinados não para as campanhas, mas para encher o bolso dos candidatos. O tempo na rádio e TV poderá ser alugado para atacar adversários mais competitivos. No final das contas, em vez de oxigenar a democracia, acabaremos enfraquecendo-a.

Em suma, considerando ambos os cenários traçados, parece improvável que as candidaturas avulsas possam ter qualquer impacto positivo, podendo mesmo ter impacto negativo para nossa democracia, tanto no que tange à diversidade, quanto à concentração de poder nas lideranças partidárias.

Sobre a importância dos partidos políticos para a democracia

O espírito anti-partido é uma presença perene desde que a democracia moderna foi instituída. George Washington, em seu discurso de despedida como presidente dos EUA, já alertava sobre os “efeitos maléficos do espírito partidário” [1]. A crítica era baseada no receio de que os partidos representariam facções que reduziriam a accountability e a responsividade do sistema político. Como se vê, nada tão diferente das críticas que hoje animam os que querem as candidaturas avulsas no Brasil.

No nascimento da democracia moderna, não se previa que a representação política devesse ocorrer apenas por meio de partidos. No entanto, partidos sempre emergiram, mesmo quando eles não foram previstos constitucionalmente, como no caso dos EUA ou Reino Unido.

A explicação tradicional é que eles ajudam a resolver o chamado problema de ação coletiva. De acordo com o trabalho clássico de Olson [2], a ação coletiva sofre do chamado problema do carona. Se uma ação coletiva atinge seu objetivo, os seus beneficiários incluem também quem não se esforçou ou pagou o custo da empreitada coletiva. Outra dificuldade da ação coletiva é o custo de coordenar ações quando o número de agentes é muito grande.

Assim, partidos políticos surgem, de acordo com essa visão, porque eles permitem aos políticos resolverem o problema do carona e coordenar suas ações.

Outro papel importante dos partidos é ajudar o eleitor a fazer escolhas. Quando vamos decidir algo importante, como comprar um carro ou contratar um funcionário para um emprego, não analisamos centenas ou milhares de opções detalhadamente. Utilizamos filtros – por exemplo, quanto queremos gastar, marcas de carro, formação e experiência de candidatos –, para só depois nos aprofundarmos nos detalhes de algumas poucas opções finais. Historicamente, os partidos políticos serviam também como atalho informacional para os eleitores.

No caso brasileiro, os partidos funcionam bem para coordenar o trabalho dos políticos no legislativo. O voto dos congressistas possui alta correlação com a indicação de voto das lideranças, partidos indicam representantes para as várias comissões, bem como são importantes para formação de maiorias e aprovação de leis.

Contudo, os partidos funcionam mal para ajudar os eleitores a votarem. O número excessivo de partidos, bem como a pouca diferenciação e clareza ideológica deles, torna pouco útil o partido como filtro para reduzir o custo cognitivo de votar. Além disso, o acesso a muitos recursos públicos, independentemente de desempenho eleitoral, incentiva que os partidos não sejam responsivos às vontades do eleitorado.

Assim, as constatações fundamentais e que deveriam orientar mudanças na organização do sistema partidário e eleitoral brasileiro são: o mau funcionamento dos partidos em seu papel de ajudar cognitivamente os eleitores a votar, e sua falta de interesse e incentivos em ouvir de fato a sociedade.

Quanto ao primeiro ponto, candidaturas avulsas devem enfraquecer ainda mais os partidos, já que aumentaremos o número de candidatos, muitos deles sem partidos, dificultando ainda mais a capacidade de identificar corretamente as posições de cada um. Com relação ao segundo ponto, as candidaturas avulsas simplesmente não endereçam a questão.

Potenciais soluções

Seth Masket, em seu livro The Inevitable Party [3], nos mostra, a partir de vários estudos de caso nos estados norte-americanos, como reformas são difíceis e, em muitos casos, pioram o problema que pretendiam corrigir. De particular nota é o caso do estado da Califórnia. Lá, havia um quase consenso de que os partidos eram extremamente polarizados, o que produzia paralisia decisória. Reformistas culpavam, em particular, o sistema de primárias para o Legislativo, posto que nas primárias, candidatos tentam atrair os votos dos mais ideológicos.

Para endereçar essa questão, foi aprovada em 2010 uma reforma em que a cédula das primárias mostraria os pré-candidatos de ambos os partidos para todos os eleitores, e os dois mais votados (que poderiam ser do mesmo partido) disputariam um segundo turno. Em teoria, os mais moderados seriam os escolhidos, pois poderiam atrair votos de ambos os partidos. Nas palavras do jornal San Francisco Chronicle, em tradução livre, a reforma criaria “um sistema no qual os representantes colocariam o que é melhor para a Califórnia à frente da doutrina partidária extremista”.

O que aconteceu de fato? Os eleitos não se tornaram mais moderados do que antes da reforma. Por quê? Ora, porque os partidos logo reagiram à mudança. Vendo-se fora do jogo, criaram eles mesmos uma pré-primária, em que seus escolhidos recebiam o apoio e divulgação do partido. Isso, por sua vez, teve um grande efeito nos eleitores, com os apoiados tendo de 10 a 15 p.p mais votos. Com o tempo, candidatos aprenderam a importância desse apoio e passaram a competir por ele.

Quais lições nós tiramos para o Brasil do que foi discutido aqui hoje? Em primeiro lugar, os caciques políticos e os partidos vão reagir à nova realidade, mudando suas estratégias. O equilíbrio final é impossível de prever. É possível, por exemplo, que os partidos escolham candidatos avulsos laranjas durante as eleições, os quais receberão recursos dos fundos públicos.

Diante do que sabemos sobre os incentivos institucionais brasileiros para candidaturas políticas, sobre a dificuldade de reformas em outros países, e sobre o fato de que os partidos e seus políticos certamente irão mudar seu comportamento diante da reforma, parece haver pouca dúvida que ela produzirá resultados insatisfatórios.

Não endereça nenhum dos principais problemas que causam os partidos a serem como são: a distribuição de recursos aos partidos (seja na forma de recursos financeiros, seja na forma de poder no regimento do congresso), e o elevado custo cognitivo do ato de votar. Se algo, ela permitirá diluir ainda mais o papel informacional dos partidos, reduzindo seu efeito positivo de estabilidade política nas relações executivo-legislativo.

O resultado é apenas tornar o aparato regulatório mais complexo, tornar as estratégias dos agentes mais complexas e menos transparentes. De fato, esse tipo de abordagem é o exato oposto do que recomendam as boas práticas do design. Ao desenhar uma solução, ela deve ser simples, não complexa. Deve ser baseada em um entendimento das necessidades das pessoas, não a tentativa de alcançar algum resultado pré-definido.

Quando pensamos a partir do design, a pergunta certa não é como desenhar bem uma solução, mas como definir o problema corretamente, para que possamos desenhar a melhor solução.

O nosso problema é que políticos – e partidos – não são punidos suficientemente por suas transgressões e, uma vez eleitos, tendem a virar as costas para o eleitor. Continuam tendo muito acesso aos recursos públicos. Continuam com chance de se eleger em eleições com muitos candidatos e pouca diferenciação entre eles. Ao mesmo tempo, controlar um partido gera muitos benefícios. Candidaturas avulsas não resolvem esses problemas. Não ajudarão a dar governabilidade e produzir políticas públicas melhores. É bem possível, aliás, que piorem esse quadro, a depender de como a medida for implementada.

Se eu pudesse apontar uma direção para achar o problema certo, perguntaria: o que os políticos precisam? Melhor ainda: o que os bons políticos precisam, que os maus políticos não querem? Serem reconhecidos como tal pelo eleitor. Precisam que outros bons políticos queiram dar espaço e se associar a eles. A candidatura avulsa parte da premissa de que os bons políticos usarão essa opção para barganhar melhores arranjos com os partidos, mas não há nada nela que não valha também para os políticos ruins. É um mau design para o problema errado. Por essas razões, me posiciono contra a possibilidade de candidaturas avulsas.

 


Manoel Galdino
Diretor-executivo da Transparência Brasil

 

referências

[1] WASHINGTON, G. (1793). George Washington Papers, Series 2, Letterbooks – 1799: Letterbook 24, April 3, 1793 – March 3, 1797. [Manuscript/Mixed Material]. Retrieved from the Library of Congress, https://www.loc.gov/item/mgw2.024/

[2] OLSON, M. (1999). A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais; tradução Fabio Fernandez. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.

[3] MASKET, S. (2016). The Inevitable Party: Why Attempts to Kill the Party System Fail and how They Weaken Democracy. Oxford University Press.