[Coluna 18] Criminalização da sociedade civil

Minha coluna dessa semana seria sobre a Lei Geral de Proteção de Dados. Já estava até escrita. Mas diante da súbita notícia de prisão preventiva da Brigada de Alter do Chão; da revelação, na Folha de São Paulo, de trechos do inquérito policial, e da fala do presidente da República sobre o fato, resolvi abordar esse caso. Entendo que há uma ameaça que paira sobre nós da sociedade civil, inclusive a própria Transparência Brasil, que é a criminalização do trabalho de organizações não governamentais (ONGs).

Os fatos

Nesta quarta-feira (27/11) a polícia do Pará prendeu preventivamente quatro pessoas ligadas a ONGs que atuam na preservação ambiental da Amazônia, no estado, particularmente em brigadas anti-incêndio. Foram soltos ontem (28/11), por decisão judicial, após ampla repercussão na imprensa e entre entidades da sociedade civil, chegando ao Ministério Público Federal e ao governo do estado do Pará.

A polícia reportou à imprensa uma série de acusações confusas. Em determinado momento, falaram que os acusados teriam desviado recursos (privados) que teriam sido doados para eles por outras ONGs, como a WWF. Ocorre que a suposta parte lesada nunca fez denúncia ou reclamou de qualquer problema. Em outro momento, falaram que os brigadistas teriam causado incêndios para justificar obtenção de doações financeiras.

Conforme relatou a Folha de São Paulo, de acordo com o inquérito policial, obter doação seria “vantagem financeira” e que se aproveitar de repercussão internacional sobre um problema para captar recursos seria um indício de crime. Ainda segundo o jornal, o inquérito aponta que os brigadistas teriam incendiado a floresta para conseguir doações. Como evidência, foi anexado um diálogo em que os brigadistas fazem previsões de quando deve haver mais ou menos fogo – informação corriqueira para quem vive na região e conhece a sazonalidade das queimadas.

Não me passou despercebido que, retiradas de contexto e com enquadramento similar, falas minhas ou de minha equipe poderiam resultar em nossa prisão, pelo trabalho que fazemos monitorando a construção de creches e escolas atrasadas ou paralisadas. É possível haver imagens que comprovam que eu e nossos parceiros visitamos obras que se encontram com problemas. Nós também, em nossos diagnósticos, documentamos a repercussão do problema, tanto para prestar contas a nossos financiadores quanto para justificar aos potenciais doadores a necessidade de financiamento de nossos projetos. E, claro, somos remunerados pelo nosso trabalho, de forma que as doações que recebemos poderiam ser qualificadas como vantagem financeira.

Inclusive, estamos desenvolvendo um modelo estatístico para prever quais obras possuem maior probabilidade de serem paralisadas, retomadas e concluídas, para que possamos ajudar a determinar onde os recursos públicos possuem maior potencial de retorno. Porém, a capacidade de prever problemas (seja por modelo estatístico ou conhecimento qualitativo), segundo a interpretação da polícia no inquérito, é prova de que os problemas são orquestrados.

Contexto maior

Não será a primeira nem a última vez que a polícia e o Ministério Público terão prendido inocentes, em um inquérito com provas parcas. Pretos e pobres no Brasil vivem essa realidade ignominiosa diariamente, sem merecer tanta atenção da imprensa e de outras organizações.

O que chama a atenção a este caso, porém, é a sinalização de uma mudança no ambiente democrático mais amplo, agravando os riscos para o exercício do controle social do governo pela sociedade civil organizada.

Nós já sabemos que o governo não é favorável a uma sociedade civil participativa, como registramos na nota pública contra o decreto 9.759/2019, que restringiu a participação social em conselhos e comissões do governo federal. Declarações que se seguiram desde então mostram que o governo nos vê como inimigos.

No dia primeiro de agosto deste ano, o presidente Bolsonaro criticou o trabalho de ONGs, quando cancelou audiência com o chanceler francês:

“O que ele veio tratar com ONG aqui?. Quando fala em ONG, já vem um alerta na cabeça de quem é que tem o mínimo de juízo (…). Ele (…) tinha marcado com ONGs. Quem é que ferra o Brasil aqui? ONGs”.

Em 21 de agosto, Bolsonaro fez acusações, sem provas, de que ONGs estariam envolvidas em queimadas. Nesta quinta-feira (28/11), o presidente voltou a atacar ONGs em transmissão ao vivo em redes sociais. Reforçou as acusações contra os jovens brigadistas – lembremos que ainda existe presunção de inocência – e atacou o trabalho de ONGs em geral:

“Logicamente o mundo não está vendo o que eu estou falando aqui, mas não doem dinheiro para ONG. ONGs não estão lá [na Amazônia] para preservar ambiente, mas em causa própria”. Não me passou despercebido que, na próxima terça-feira, é o Dia de Doar.

O ministro Ricardo Salles também reforçou o ataque aos brigadistas presos, bem como um dos filhos do presidente, em redes sociais. É um reforço claro, do entorno do presidente, para que a polícia continue a desacreditar e intimidar a sociedade civil em assuntos de claro interesse público e que contestam a narrativa governamental.

Corredor estreito

O presidente e seu governo têm atacado primordialmente ONGs que atuam com meio ambiente – tema que iremos abordar, pela via da transparência, a partir do ano que vem. Mas o modus operandi sugere que atacam quem pode lhes causar problema. No caso do meio ambiente, as organizações trazem informações e contestam dados governamentais, levando a críticas internacionais. No momento em que organizações como a Transparência Brasil forem vistas como organizações que atrapalham a agenda do governo, seremos alvos do mesmo ataque.

Em livro recente, The Narrow Corridor, o economista Daron Acemoglu e o historiador James Robinson argumentam que o desenvolvimento de sociedades depende de um corredor estreito, onde um estado forte alimenta uma sociedade forte e vice-versa, de forma a preservar liberdades e direitos. Não parece haver dúvida de que está em jogo no Brasil o enfraquecimento do lado da sociedade, com ataques reiterados à imprensa e às organizações da sociedade civil sem fins lucrativos, justamente os pilares do desenvolvimento de uma nação.

Para nós da Transparência Brasil, trata-se de deixar evidentes os riscos que estamos correndo, bem como o fechamento que está tentando se impor a uma sociedade livre. Àqueles que ainda acham que as instituições estão funcionando, parafraseio um dito, segundo o qual instituições estão funcionando, até o dia em que não estiverem mais. Elas não serão preservadas sem a ação ativa e engajada da sociedade. Bravatas de “não irão nos intimidar” e similares tampouco são úteis. Somos todos agentes racionais que calculam riscos e benefícios. Foi nesse contexto que entendi, inclusive, a fala repugnante do ministro da Economia, Paulo Guedes, sobre o AI-5. Eles sabem que intimidam, e precisamos reagir enquanto é tempo.


Manoel Galdino
Diretor-executivo da Transparência Brasil