[Coluna 15] PEC (188) do Pacto Federativo: uma análise

Fiz uma leitura detalhada da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 188 de 2019, que o governo federal chamou de PEC do Pacto Federativo, e aqui apresento uma análise geral. É um projeto muito ambicioso, pois muda muito de uma só vez. A proposta modifica a redação de 24 artigos da Constituição Federal (CF) e de quatro artigos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Além disso, acrescenta sete novos artigos à Constituição e quatro ao Ato.


Transparência

A PEC introduz duas medidas que podem alterar completamente o quadro de transparência fiscal, de despesas e orçamento brasileiro. Uma delas determina que todos os dados contábeis, fiscais e orçamentários de todos os entes da federação deverão ser submetidos a um órgão da União.

Qual o impacto potencial dessa mudança? Se funcionar, não precisaremos mais analisar todos os portais de transparência dos mais de 5 mil municípios para saber como anda o gasto com educação, saúde, entre outros. Isso criará uma padronização e harmonização sobre rubricas que permitirá a comparação fiscal de todos os estados e municípios. Ajudará bastante no controle externo, controle social bem como até no período eleitoral, pois a oposição terá uma ferramenta fácil e confiável para apontar municípios vizinhos que estejam melhores.

Para garantir o enforcement, municípios e estados que não cumprirem com esta obrigação estarão impedidos de receber transferências voluntárias e contrair crédito com a União.

Esse é um bom exemplo do que parece ser ingenuidade do governo. A falta de organização do estado brasileiro, inclusive das despesas, torna inviável — sem período de transição e investimentos — que a maioria dos entes subnacionais consiga cumprir a medida.

Se os entes não conseguirão cumprir a legislação nem se quiserem, é politicamente inviável tal tipo de punição. Como resultado, ela será inócua no sentido de que não haverá padronização de conceitos e se perderá a rastreabilidade e comparabilidades pretendidas, ou será mais uma lei que não terá pegado — se for aprovada.

Outras medidas de transparência a destacar são a exigência de conceder penduricalhos indenizatórios apenas por meio de lei, bem como a obrigatoriedade de análise de viabilidade para a inclusão de investimentos no orçamento. Ambas facilitarão controle externo e social, ao aumentar informação sobre gastos e investimentos.


Planejamento

O governo propõe uma série de mudanças que impactam o planejamento de médio e longo prazo do estado. Notadamente, retirou a exigência constitucional de se fazer um Plano Plurianual (PPA), torna a Lei de Diretrizes Orçamentárias o principal instrumento a regular o orçamento, e cria a figura do orçamento plurianual, com indicação orçamentária de vários anos.

Problema dessa medida é que reduz, em vez de aumentar, a capacidade de planejamento do estado. É verdade que o PPA funciona mal, mas em vez de aprimorá-lo, o governo optou por extingui-lo. Da forma que propõe, as diretrizes orçamentárias regulam o orçamento, porém é no orçamento que se abordará o planejamento plurianual. Uma contradição clara, que resulta de se extinguir o PPA e deixar o orçamento com mandato de planejar múltiplos anos.


Controle

A proposta incide também sobre o funcionamento do controle externo e interno. No pacto federativo brasileiro, não há hierarquia entre o Tribunal de Contas da União (TCU) e os Tribunais de Contas dos Estados e dos Municípios (TCEs e TCMs). A PEC altera esta relação, ao determinar que o TCU poderá estabelecer orientação vinculativa em matérias reguladas por lei complementar sobre temas fiscais, notadamente a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Além disso, caso os TCEs e TCMs descumpram orientação do TCU, este deverá decidir no lugar dos primeiros. Trata-se, então, de uma grande alteração no pacto federativo, retirando poder dos estados e municípios e transferindo-o para o nível federal. Afinal, quem indica ministros e conselheiros dos Tribunais de Contas são os respectivos Executivos e Legislativos de cada nível federativo. Reforça-se também a transformação do Tribunal em algo mais próximo do Judiciário, embora os ministros e conselheiros continuem não sendo juízes.

Conforme mostrou estudo de Thiago Fonseca [1], o TCU é bastante independente em relação aos municípios e tem pouca politização nas decisões sobre eles. Parece ser esse fato que o governo tem em mente quando propõe esta mudança.

Por outro lado, vale lembrar que uma das críticas aos Tribunais de Contas é a de que neles, diferentemente do Judiciário brasileiro, o ministro/conselheiro dirige a acusação, julgamento e recurso. E não se pode recorrer ao Judiciário, via de regra. Ao criar uma hierarquia entre os tribunais, altera-se profundamente o pacto federativo, pelas ramificações que esta mudança traz.

A PEC também cria o Conselho Fiscal da República, um “conselhão” formado pelo presidente da República, do Supremo, da Câmara, do Senado, do TCU e representantes de governadores e prefeitos, para supervisionar as finanças públicas, bem como fixar diretrizes, recomendações e comunicar irregularidades. Além de ser uma jabuticaba brasileira no que tange ao controle, legaliza a prática advogada por Romero Jucá, de “um grande acordo nacional, com Supremo, com tudo”, numa clara violação das separações de poderes e do princípio de freios e contrapesos. A prática definirá a importância dessa instituição, mas é claramente um movimento de fortalecer a capacidade da União de controlar os demais entes federativos, especialmente quando lido à luz das outras emendas.

Por fim, a PEC também remove o mandato constitucional dos controles internos de Executivo, Legislativo e Judiciário para avaliar o PPA. Eis um exemplo de lei constitucional que não pegou, e que o governo propõe extinguir.

Fiscal

O grosso da PEC incide sobre questões fiscais, como regra de ouro, gatilhos para corte de despesas — como redução de carga de trabalho e remuneração proporcionalmente —, revisão anual de salários de servidores — deixa de ser obrigatória — entre muitas outras medidas propostas. Considerando a atuação recente da Transparência Brasil em políticas de educação,   quero comentar as mudanças propostas sobre gastos em saúde e educação.

Como já foi amplamente noticiado, o governo propõe remover a obrigação de se gastar um mínimo específico com saúde e educação, em troca de um mínimo global com as duas rubricas. Assim, se antes a União deveria gastar pelo menos 15% das receitas com saúde e 18% com educação, agora poderia gastar até zero com uma das áreas, desde que a soma do gasto de ambas seja pelo menos 33% das receitas. Valeria o mesmo, mutatis mutandis, para estados e municípios.

Além disso, a PEC propõe repassar, na integralidade, o salário-educação a estados e municípios. Atualmente, 40% da receita líquida fica com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) — autarquia vinculada ao Ministério da Educação (MEC) — e, os 60% restantes são repassados aos entes subnacionais.

Em 2017 os 60% repassados aos estados e municípios foi de R$ 12,5 bilhões, segundo dados do FNDE. Cerca de R$ 8 bilhões ficaram com o FNDE. Porém, estes recursos eram utilizados em programas de educação básica, como Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Programa Nacional de Apoio ao Transporte do Escolar (PNATE) e Proinfância (construção de creches e escolas). Em 2017, o orçamento do FNDE (a parte o salário-educação) para a educação básica foi de cerca de R$ 20 bilhões. Como quase R$ 13 bilhões correspondem ao FUNDEB, isso significa que retirar o salário-educação do FNDE implicará, na prática, em extinguir todo o orçamento do FNDE para a educação básica — exceto o FUNDEB.

Nesse sentido, não haveria mais dinheiro necessariamente para estados e municípios investirem em educação, apenas mais flexibilidade, já que não seria distribuído por programas definidos pelo FNDE, mas por cada ente subnacional. Por outro lado, vários desses programas do FNDE (como PNAE e PNATE) são regulados por lei ordinária e precisariam, portanto, de mudança legislativa para serem extintos.

Tudo isso não está claro e não se dará do dia para noite, já que mudanças no Ato de Disposições Constitucionais Transitórias preveem um período de transição para as mudanças no salário-educação. É preciso, contudo, esclarecer essa questão do financiamento do FNDE para saber o impacto nos programas já existentes. De modo mais geral, pelo escopo e potencial de impacto da PEC, é fundamental que o Congresso tome o tempo que for necessário para discutir com profundidade como será a implementação e as consequências dessas mudanças.


Visão Geral da PEC 188/2019

Grosso modo, a PEC altera a legislação constitucional em quatro grandes blocos: pacto federativo, regras fiscais, controle externo e interno, e transparência. De maneira geral, e contrário ao discurso do ministro Paulo Guedes, a medida fortalece politicamente o Executivo Federal em relação aos demais entes da federação, bem como em relação aos demais poderes. É, assim, uma PEC que aponta o Brasil um pouco mais na direção de um estado unitário e menos federativo, e com mais força do Executivo em relação ao Legislativo e Judiciário.

A PEC parece supor que a implementação de regras não constitui um problema grave. Porém, são justamente a implementação e o enforcement de uma regra que determinam como os agentes políticos responderão às mudanças propostas.

Por fim, a PEC tem uma série de medidas muito importantes — talvez as mais importantes, se forem implementadas a contento — na promoção da transparência e que podem, no longo prazo, contribuir bastante para um estado mais responsivo e com maior capacidade de prestação de contas.

Tudo bem pesado, a PEC, tal como proposta hoje, é ruim do ponto de vista mais amplo do desenho de instituições democráticas, mas com boas propostas pontuais que merecem ir para frente. O problema de querer mudar muita coisa ao mesmo tempo é que a gera muito ruído para pouco sinal e podemos acabar não separando bem o joio do trigo.


Manoel Galdino
Diretor-executivo da Transparência Brasil

[1]  Em artigo publicado na revista científica Dados em 2019,
o cientista político Thiago Fonseca analisou se indicações políticas do TCU impactavam as fiscalizações do tribunal em casos municipais, e não encontrou efeito relevante. Isso sugere que o TCU, quando se trata dos municípios, é bastante autônomo em relação a questões políticas, como o partido do prefeito.