A disputa de narrativas em torno do Lula já anuncia o que se seguirá nos próximos meses. Muito ainda vai girar em torno dele. Embora compreensível do ponto de vista do cálculo político e eleitoral, muitas discussões importantes vão ser esquecidas. Paradoxalmente, a própria agenda de combate à corrupção deve ser uma delas. Nesse texto, tento recuperar como chegamos aonde chegamos. Em um próximo texto, tentarei explorar qual deveria ser nossa agenda de combate à corrupção, a partir do entendimento adequado das causas da situação atual.
Creio que devemos partir da necessidade de compreensão de como a democracia brasileira é abalada com a prisão do Lula nos termos em que ela aconteceu. A democracia é, em primeiro lugar, uma forma de processar conflitos. Forças políticas se organizam para disputar o poder e competir pelos votos dos eleitores, a partir de propostas, nomes e símbolos.
Nesse sentido, desde 1994, PT e PSDB têm organizado a luta política pela Presidência da República no Brasil. E com isso tinham pautado uma agenda de debate que, ainda que simplificada, organizava o espaço político e permitia à sociedade decidir quais suas prioridades. De um lado, um partido voltado para o social e inclusão (do ponto de vista petista)/ voltado para o aparelhamento e intervencionismo estatal (do ponto de vista tucano); de outro, um partido voltado à reformas econômicas modernizantes (do ponto de vista tucano)/ privatista e entreguista do patrimônio estatal (do ponto de vista petista). PMDB e outros partidos menores eram responsáveis pela introdução de nuances nesse discurso (e que muitas vezes se refletiram em candidatos que buscaram romper, sem sucesso, a disputa entre PT e PSDB pela presidência, como Ciro Gomes, Garotinho, Heloísa Helena e Marina Silva), bem como representavam a permanência do que se costumou chamar de fisiologismo.
O sistema parecia em equilíbrio, mas algumas mudanças institucionais, aparentemente sem maiores consequências, tornaram o equilíbrio mais instável. Em primeiro lugar, o executivo perdeu um pouco da sua força em relação ao legislativo. As sucessivas mudanças na regulação das medidas provisórias são o maior exemplo disso. Em segundo lugar, a fragmentação partidária ampliou a importância dos partidos fisiológicos na formação de maiorias congressuais. Em terceiro lugar, as mudanças sociais de inclusão alteraram as forças sociais de apoio ao PT. Em quarto lugar, o aperfeiçoamento das instituições de controle permitiu um combate à corrupção sem precedentes na história do Brasil. E aqui vale a pena detalhar como isso aconteceu.
Nos anos 90, sob a égide da constituição, os promotores públicos travaram o combate à corrupção por meio das ações civis de improbidade administrativa, do qual o maior exemplo foi Paulo Maluf. Ele foi condenado, por exemplo, por “ abertura de crédito suplementar no valor de R$ 1,8 bilhão sem seguir os pressupostos legais” (Excelências, da Transparência Brasil). Lembraram das Pedaladas? Pois é. Esse processo ainda corre em terceira instância, e não implica em prisão, mesmo após o trânsito em julgado justamente porque a improbidade administrativa (inovação legal de 1992) é ação civil.
Essa estratégia continua, mas sem o sucesso midiático da Lava-Jato. De acordo com dados do CNJ, em 2017 tivemos 580 condenações em tribunais federais com trânsito em julgado e 1.245 em tribunais estaduais, com determinação de pagamentos de multas de mais de meio bilhão de reais e um trilhão de ressarcimento ao erário. Isso apenas em 2017. Não temos dados de quanto de fato foi pago para o erário, embora provavelmente pouco foi recuperado. Muitas dessas condenações, inclusive, implicam também em inelegibilidade do agente público. Ou seja, para além da própria Lava-Jato, há sim bastante condenação de combate à corrupção ou, de maneira mais ampla, improbidade administrativa.
De todo modo, nos anos 90, a estratégia de combate à corrupção era, da parte dos promotores, de utilizar os processos de improbidade administrativa. Do ponto de vista do governo federal, o combate à corrupção não era prioridade, embora vários aperfeiçoamentos institucionais do período viriam a ser importantes no futuro para a promoção da integridade.
Em 1998, por exemplo, Fernando Henrique cria o COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), vinculado ao Ministério da Fazenda, no bojo de legislação sobre lavagem de dinheiro. Chamadas de legislação de primeira geração de lavagem de dinheiro, requeriam o chamado crime antecedente, isto é, que se comprovasse um crime específico (a partir de uma lista) como origem do dinheiro. A essa época, corrupção não fazia parte do rol de crimes antecedentes. O objetivo era mais combater tráfico de drogas, por exemplo. Posteriormente, já sob o governo Dilma, qualquer crime pôde ser um crime antecedente, incluindo aí, portanto, a corrupção. Ou seja, é a partir de 2012 que o crime de lavagem de dinheiro pode ter como origem dinheiro ilegal de corrupção. Até 2012, por exemplo, Lula não poderia ser condenado por lavagem de dinheiro no caso do Triplex.
De maneira similar, em 1990 o Brasil cria a figura da delação premiada (lei 8.072/1990), mas apenas para crimes hediondos (o que a corrupção não é, pelo código penal brasileiro). Apenas com a lei 12.529/2011 a legislação introduziu a figura dos acordos de leniência para os processos no CADE, mais próximo da delação premiada regida pela lei 12.846/2013, que foi aprovada pelo governo Dilma como resposta às jornadas de junho. Novamente, toda a Lava-Jato não seria possível antes de 2013 e da inovação institucional do governo Dilma.
A ENCCLA — Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro — foi criada em 2003 para servir como centro de coordenação de instituições voltadas para o combate à corrupção e lavagem de dinheiro. Atualmente, quase 80 instituições participam da ENCCLA (como Receita Federal, Banco Central, Polícia Federal, Ministério Público, COAF, BNDES etc.). Ela produziu a lei das organizações criminosas, chamada de lei anti-corrupção (sic), treinamento de mais de dezoito mil agentes no combate à corrupção e lavagem de dinheiro, delegacia especializada em lavagem de dinheiro no âmbito da PF, criação de laboratórios tecnológicos de combate à lavagem de dinheiro e facilitação da cooperação internacional sobre lavagem de dinheiro [1, 2].
Em 2003, o governo Lula criou também a Controladoria Geral da União, que implementou a ideia de controle interno e serviu como modelo para criação de órgãos similares em municípios e estados Brasil afora, dos quais dois exemplos são as controladorias de Brasília e do município de São Paulo.
O Brasil (poder judiciário) criou ainda as varas especializadas em lavagem de dinheiro em 2003 [3], como resultado de avaliação entre membros de órgãos de controle da ineficácia da lei de lavagem de dinheiro [4]. Sérgio Moro era titular da vara especializada em lavagem de dinheiro quando se iniciou a Lava-Jato.
Por fim, como é mais conhecido, a partir do governo Lula a Polícia Federal ganhou autonomia e recursos, bem como a Procuradoria Geral da República, que passou a ter escolhido pelo presidente o indicado pela categoria para o cargo de procurador geral da república.
Como se vê, o aperfeiçoamento institucional no combate à corrupção por parte dos governos do PT foi completamente responsável pela possibilidade de existir uma Lava-Jato. Contudo, boa parte dos aperfeiçoamentos se deu em nível federal.
Embora o aperfeiçoamento da legislação se dê para todos os níveis da federação, inexiste o equivalente à ENCCLA no nível dos estados, ou a cooperação entre polícia independente e com recursos, ministério público também independente e judiciário estadual em vara especializada. Em muitos casos, sequer existe controladoria interna, como é o caso do governo do estado de São Paulo. Isso explica, em parte, porque o sucesso da Lava-Jato tem mais dificuldade de ser replicado ao nível dos estados e municípios.
Todo esse aperfeiçoamento institucional viabilizou, então, o combate à corrupção. No entanto, o sistema político por muito pareceu não se importar com esses aperfeiçoamentos institucionais. Tomemos, por exemplo, a operação Castelo de Areia. Em 2009, esta operação da PF identificou suspeitas de desvio de dinheiro e propinas na obra da refinaria de Abreu e Lima, em Pernambuco, além de irregularidades no Rodoanel, túneis da avenida Roberto Marinho (sic) e trechos do metrô em São Paulo e Salvador. Sete partidos tinham planilhas com menções a doações, que os policiais acreditavam serem propinas: PSDB, DEM, PPS, PMDB, PSB, PDT e PP. PT, PV e PTB, embora citados durante a investigação, foram excluídas do relatório final da PF. E quem estava no centro do escândalo? Ele mesmo, Michel Temer [5].
À época, o juiz Fausto de Sanctis, que havia autorizado as escutas, prisões e apreensões, era criticado de maneira muito similar ao juiz Moro. Diferentemente da Lava-Jjato, porém, a operação procurou enfatizar que não tinha como foco os políticos [6]. Como sabemos, não deu certo, e a operação foi anulada no STJ, que hoje encontra-se sob suspeitas de ter anulado a operação em virtude de pagamento de propina[7].
O que mudou para que a Lava-Jato não fosse anulada como a Castelo de Areia, Satriagaha e outras, que resultaram em muita mídia e pouca punição? Em primeiro lugar, a própria lei de delação-premiada. Em segundo lugar, o julgamento do Mensalão, que referendou interpretação mais fácil de provar crimes de corrupção (teoria do domínio do fato) e deu ânimo aos juízes e promotores de que era possível colocar políticos na cadeia. Se me permitem a ironia, mais uma contribuição do PT, ainda que involuntariamente, para o combate à corrupção pela justiça.
Todas essas pequenas mudanças, operadas ao longo de quase duas décadas, em conjunto, tornaram possível uma operação como a Lava-Jato. Ao mesmo tempo, como cada uma delas, sozinha, não alterava a percepção de impunidade para os poderosos, não induziu comportamento diferente por parte dos políticos que aprovaram muitos desses aperfeiçoamentos. É um caso, portanto, de falta de clareza para as consequências de longo prazo sobre eles mesmos dessas mudanças.
Além disso, por coincidência ou não, o combate à corrupção, quando atingiu políticos, foi muito eficiente em atingir o coração do PT, e pouco eficiente em atingir o PSDB, o principal partido do outro polo de disputa do presidencialismo brasileiro. Do mensalão até agora, efetivamente tivemos Lula, Dilma, Palloci, Dirceu, Genoíno e João Paulo Cunha retirados do poder e do jogo político. É boa parte da elite política dirigente do PT. Imaginem que Alckmin, Serra, Fernando Henrique Cardoso e Aécio estivessem presos ou destituídos dos cargos que ocuparam como resultado da luta contra a corrupção?
Por outro lado, os partidos fisiológicos, por terem como objeto principal a ocupação de cargos para fins outros que a implementação de agenda político-ideológica, funcionam mais como como organizações criminosas comuns, em que retirar um líder apenas abre espaço para outros. A falta de reconhecimento dessa assimetria entre os partidos políticos brasileiros e do impacto que o combate à corrupção causa entre eles coloca um desafio grande para a democracia brasileira. Nesse sentido, não é coincidência que os principais beneficiários do impeachment de Dilma tenham sido os partidos fisiológicos. Mas eu exploro mais esse aspecto do nosso sistema político no próximo texto.
- http://anticorrupcao.direitorio.fgv.br/projetos/enccla
- http://enccla.camara.leg.br/acoes/acoes-de-2017
- http://revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm
- http://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/Edicao018/Cristiano_Manfrim.htm
- http://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2013/junho/ministro-dipp-abre-encontro-dos-juizes-das-varas-especializadas-em-lavagem-de-dinheiro
- https://natpaiva.wordpress.com/2015/04/15/as-ruas-tem-memoria-impeachment-temer-e-a-operacao-castelo-de-areia/
- http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,castelo-de-areia-nao-teve-como-foco-politicos-diz-de-sanctis,345970
- https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/09/19/O-que-foi-a-Castelo-de-Areia.-E-por-que-a-opera%C3%A7%C3%A3o-voltou-%C3%A0-tona-agora