[Coluna 12] Como a existência do Senado nos ajudou a impedir manobra da Câmara em favor da improbidade partidária

Em 21 de novembro de 2018, deputados apresentaram o Projeto de Lei 11.021, que, como dizia a ementa no site da Câmara dos Deputados, “Dispõe sobre a remuneração recebida por funcionário de partido político com recursos do fundo partidário e dá outras providências.” Um projeto relativamente inócuo.

Em 25 de junho deste ano, contudo, PP, MDB, PTB, PT, PSL, PL, PSD, PRB, PSDB, PDT, DEM e PROS apresentaram requerimento de urgência, o que é estranho para uma matéria tão inócua. Com a pauta cheia e a proximidade do recesso parlamentar, a matéria acabou não apreciada até julho. Na volta do recesso, os líderes partidários conseguiram aprovar inversão de pauta e incluir a matéria para votação em 03 de setembro. O deputado Ivan Valente (PSOL-SP) solicitou a retirada do projeto de pauta, sem sucesso (296 votos contra e 71 favoráveis).

Como o projeto tramitava em regime de urgência, o rito de votação foi diferenciado. No regime de urgência, o parecer que deveria acontecer na comissão ocorre em plenário, por um congressista designado como relator. Assim, toda a tramitação de um PL (discussão em comissões, realização de audiências públicas, votação do relatório, para só então seguir para plenário) é sumarizada e pode acontecer em uma única sessão legislativa. 

No caso do PL 11.021/2018, o parecer da Comissão de Trabalho foi lido e aprovado em plenário no dia 03 de setembro, após a referida inversão de pauta, e em seguida foi aprovado o relatório da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), também em plenário, pelo deputado Wilson Santiago, (PTB-PB). Em seguida, “do nada”, uma Subemenda Substitutiva Global foi apresentada e aprovada. Isso significa que o inteiro teor do projeto foi modificado, e o projeto da CCJ improvisada em plenário era outro, sem a necessidade de reiniciar a tramitação. Faltava apenas votar os destaques do novo PL em plenário.  A essa altura, espero que tenha ficado claro que eu acabei de descrever uma clássica “manobra legislativa”, dentro do regimento, para se aprovar um texto na surdina.

No dia 04 de setembro, a tramitação continuou. O partido NOVO pediu retirada de pauta e perdeu. Vários destaques foram votados em relação a Subemenda Substitutiva Global, e foram, no geral, rejeitados. Ao final, a matéria foi aprovada, e encaminhada ao Senado.

O que diz a nova redação do PL?

O novo texto apresenta uma série de retrocessos em termos de transparência e auditoria das contas partidárias, além de facilitar caixa dois e desvio de recursos públicos durante eleições.

O art. 34 da lei nº 9.096/95, segundo a nova redação, permitirá a utilização de qualquer sistema de gestão contábil para prestação das contas partidárias ao órgão de controle, em detrimento da utilização do Sistema de Prestação de Contas Anuais (SPCA), implementado pela Justiça Eleitoral em 2017. Com isso, será inviável o controle tanto pelos tribunais eleitorais, quanto pela sociedade, do uso de recursos públicos, já que não haverá padrão nas contas dos partidos.

Além disso, também determina a aplicação de multa pela desaprovação de contas eleitorais somente nos casos em que se comprove conduta dolosa (intencional), elemento que é difícil de ser verificado em atividades contábeis. Não obstante, essa alteração seria aplicada retroativamente em benefício de processos de prestação de contas que ainda não tenham transitado em julgado em todas as instâncias, funcionando como uma anistia.

Outras alterações incluem:

1) não punir partidos ou candidatos que inserirem dados incorretos nos sistemas de informação e publicação de contas de campanha, o que na prática se traduz em autorização para inserir dados falsos deliberadamente;

2) permitir que o fundo partidário seja utilizado para: pagar advogados e contadores por fora do limite de gastos determinado na contabilidade da campanha; pagar passagens aéreas para qualquer pessoa; e custear ações judiciais de controle de constitucionalidade;

3) retirar as contas bancárias de partidos dos controles de PEP (pessoas politicamente expostas);

4) isentar partidos de obrigações trabalhistas em relação a seus funcionários;

5) permitir que pessoas físicas paguem despesas de campanha com advogados e contadores, sem limite de valor, facilitando práticas de caixa dois e lavagem de dinheiro.

Como se não bastasse, ainda diminui as capacidades da Justiça Eleitoral, já que a impede de requerer aos partidos documentos emitidos pela administração pública ou por bancos, transfere a ela a gestão de dados dos filiados aos partidos, determina que ela só pode penalizar diretórios locais de partidos após comprovar que notificou o diretório nacional, e cria um novo recurso suspensivo que estimula a acumulação de processos no Tribunal Superior Eleitoral.

 

Como fizemos incidência?

Entre a matéria sair da Câmara dos Deputados e entrar na pauta do Senado, o Movimento Transparência Partidária se debruçou sobre o novo conteúdo do Projeto de Lei e redigiu uma análise dos retrocessos, bem como uma carta aberta para ser entregue ao presidente do Senado.

A despeito do interesse de boa parte do Congresso em aprovar o novo texto de forma sumária, sem dar tempo da sociedade civil se mobilizar e a imprensa informar a população do que estava sendo votado, o fato do país ter duas Câmaras Legislativas como parte do nosso sistema de freios e contrapesos forneceu o tempo necessário para a sociedade civil se organizar. Fôssemos um país com sistema unicameral – como às vezes alguns mais afoitos defendem – não teria sido possível bloquear o retrocesso.

O tempo extra fornecido pelo nosso sistema legislativo foi crucial. Às 17h da quinta-feira, 11 de setembro, o Transparência Partidária reuniu organizações da sociedade civil com expertise no tema para debater uma carta conjunta. Enquanto discutíamos o tema, descobrimos às 18h que, mesmo fora da pauta, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, queria votar o PL naquele dia. A questão se tornara urgente.

Até aquele momento, apenas Transparência Partidária e Contas Abertas haviam subscrito a carta. Transparência Brasil foi a próxima, outras organizações seguiram. Divulgamos a carta entre mais organizações, que aderiram à iniciativa e, assim, ampliamos os apoios. A carta, juntamente com o resumo analítico dos retrocessos, foi distribuída amplamente no plenário da casa. Senadores simpáticos aos nossos argumentos começaram discursos e movimentos para pelo menos retirar o projeto da pauta e adiar a votação. A matéria era controversa, e a maioria não havia nem mesmo lido o PL. A despeito dos prazos apertados – a lei precisa ser aprovada até começo de outubro para impactar a eleição do ano que vem, devido ao princípio da anualidade –, era temerário votar em regime de urgência a matéria sem passar por nenhuma comissão.

Senadores de vários partidos entraram em regime de obstrução. O número de senadores reconhecendo a necessidade de mais tempo aumentava. O relator da CCJ em plenário (a matéria continuava com urgência no Senado) tentava argumentar que não havia nada demais e que o projeto precisava ser aprovado logo. Mas a mobilização da sociedade civil – nas redes sociais, começamos uma mobilização, como nesse tuíte nosso –, com a leitura em plenário dos nomes das entidades questionando o projeto, ajudou a reverter a situação. Até que, pouco antes das 21h, a matéria foi retirada de pauta e agora precisará passar na CCJ no Senado, e não mais apenas em plenário. Uma vitória construída em boa parte em apenas 4 horas, além do tempo de passar de uma casa a outra, e com a liderança do Transparência Partidária.


Manoel Galdino
Diretor-executivo da Transparência Brasil

PS: Eu estarei de férias a partir de segunda-feira, 16 de setembro, retornando em 07 de outubro. A coluna ficará suspensa durante este período e voltará a ser publicada na segunda sexta-feira do próximo mês, dia 11 de outubro. Até lá!