Fake news – ou mais precisamente, desinformação – é, naturalmente, uma preocupação para a Transparência Brasil, na medida em que afeta a transparência pública. Esta não se resume ao papel do governo de disponibilizar informações, isto é, dar publicidade. É necessário que as pessoas efetivamente consigam acessar e entender as informações, e dar significado mais preciso para a realidade a partir destas informações. Sem esse efeito, a disponibilização de mais informações será inócua em produzir mais accountability, controle social e, por conseguinte, menos corrupção. Precisamos, portanto, pensar em como enfrentar esse problema.
No dia 10 de julho deste ano, eu li um tuíte que falava do Decreto nº 9.902/2019, alterando regulamentação sobre produção de cerveja. Nele, informava-se que o decreto excluiu a proibição de uso de sabão para produzir espuma. Eu cheguei a compartilhar a notícia para alguns poucos amigos de que a cerveja poderia ter sabão.
Poucos minutos depois duvidei de minha própria crença. O governo é dado a absurdos, mas permitir uso de sabão na cerveja? Após rápida investigação, descobri que a proibição continuava em vigor, só que não mais naquele decreto, mas em outro instrumento normativo.
Afinal, por que somos enganados por desinformação?
De modo geral, eis o que comumente se acredita ser a forma racional de decidir sobre a veracidade de uma história: lê-se a notícia, avalia-se a plausibilidade dela e em seguida chega-se a um juízo sobre sua veracidade, sempre deixando as emoções de lado.
No meu caso, o processo se deu de modo totalmente diverso. Em primeiro lugar, eu vinha lendo, da mesma fonte e de outras similares (jornalistas ou analistas), análises críticas de novos decretos do governo Bolsonaro. Com raras exceções, os fios – como se chamam a sequência de tuítes – criticavam absurdos e erros do governo. Então, minha experiência passada formava em meu cérebro uma predisposição de que estava diante de mais um relato com críticas aos absurdos do governo.
Em segundo lugar, antes do tuíte sobre a bolha de sabão na cerveja, havia comentários sobre potenciais problemas – como revogação de proibição de corantes nas cervejas, ou regras para classificação de cervejas em puro malte e alta e baixa fermentação, e como vocês podem adivinhar, gosto de uma cerveja artesanal –, de modo que fiquei com predisposição negativa para aquela sequência de tuítes.
Em terceiro lugar, a medida era vinculada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), cuja percepção minha era de um ministério que estava adotando medidas extremamente problemáticas.
Então, cheguei ao fatídico tuíte da bolha de sabão. Meu cérebro, antes mesmo de ler o conteúdo específico, já tinha feito uma previsão sobre a veracidade e – talvez mais importante – o caráter emocionalmente negativo daquela norma. Eu já havia construído imagens no meu cérebro tomando cerveja ruim com amigos. A leitura apenas confirmou o que meu cérebro já esperava: era mais um decreto absurdo.
É verdade que, em algum lugar da minha mente, houve alguma dissonância. Colocar bolha de sabão em cerveja é obviamente ruim e não há quem possa ganhar com essa medida. Grandes empresas têm processos rígidos e não se arriscariam tanto. Cervejas artesanais têm uma preocupação muito grande justamente com sabor e qualidade. Mas como todo o resto apontava para a veracidade e, mais ainda, havia a necessidade de se indignar e compartilhar a notícia, deixei essas pequenas dúvidas de lado e compartilhei a história com alguns amigos.
Mas a dúvida foi crescendo e lembrei que o viés de confirmação – tendência de procurar confirmar o que acreditamos, em vez de checar se não estamos errados – poderia estar me traindo. Rapidamente achei que a interpretação que fiz era errada. Havia um nota do MMA explicando que outra norma mantinha a proibição e, portanto, não havia risco de bolhas de sabão na cerveja – pelo menos, não por causa de mudanças de regulamentação.
Viés de confirmação?
Ocorre que o que aconteceu comigo está longe de ser exceção. O que os achados científicos da psicologia e neurociência nos dizem sobre como o cérebro funciona sugerem que todos estamos sujeitos a acreditar em desinformação [1, 2, 3, 4].
Nosso sistema de crenças é baseado em experiências passadas, conhecimento e emoções que são ativados quando lemos uma determinada notícia. Nosso cérebro faz então uma previsão com alta confiança de que uma dada notícia é verdadeira. Esta, por sua vez, é confirmada pelas emoções ativadas e informações processadas pelo cérebro durante a leitura da notícia.
Chave, aqui, é a interpretação de que o cérebro preditivamente – em vez de reativamente – guia o comportamento. Primeiro o cérebro faz um chute com base em experiências passadas e no contexto em que está inserido. Só depois a notícia ou informação é processada e a discrepância minimizada.
Além disso, cada resultado é um sinal para que o cérebro atualize seus chutes iniciais futuros. Obviamente, a cada resposta consistente a confiança em determinado comportamento é reforçada.
O viés de confirmação, assim, ocorre quando o cérebro é levado a elicitar uma previsão que busca confirmar um estado emocional e cognitivo específico. Similarmente, a crença em desinformação ocorreria porque uma dada informação é coerente com os processos cognitivos, emocionais e perceptivos relacionados a uma dada notícia.
Como meu exemplo ilustra, precisamos estudar e entender quais mecanismos são mais propícios a levar as pessoas a acreditarem em desinformação, e como desenhar mecanismos que possam combatê-la. Em vez de pensar que as pessoas não são racionais, devemos lembrar que a racionalidade é ecológica, isto é, uma questão de adequação entre contexto e uso de emoções, cognição e percepção pelo nosso cérebro, muito além da mera lógica.
Não sabemos ainda com precisão os mecanismos psicológicos específicos sobre como notícias falsas se propagam, mas com base neste paradigma podemos testar intervenções com maior chance de serem efetivas. Há alguns estudos sendo feitos nessa direção, com resultados promissores [5]. Ainda precisaremos de muita experimentação, mas acredito que chegaremos mais longe com uma visão mais realista e acurada sobre como funciona a mente humana.
Manoel Galdino
Diretor-executivo da Transparência Brasil
[1] Moretto, Giovanna, et al.
“A psychophysiological investigation of moral judgment after ventromedial prefrontal damage.” Journal of cognitive neuroscience 22.8 (2010): 1888-1899 (link)
[2] Lindquist, Kristen A., et al.
“The brain basis of emotion: a meta-analytic review.” The Behavioral and brain sciences 35.3 (2012): 121. (link)
[3] Hoemann, Katie, and Lisa Feldman Barrett.
“Concepts dissolve artificial boundaries in the study of emotion and cognition, uniting body, brain, and mind.” Cognition and Emotion 33.1 (2019): 67-76. (link)
[4] Duncan, Seth, and Lisa Feldman Barrett.
“Affect is a form of cognition: A neurobiological analysis.” Cognition and emotion 21.6 (2007): 1184-1211. (link)
[5] Paynter, Jessica, et al.
“Evaluation of a template for countering misinformation—Real-world Autism treatment myth debunking.” PloS one 14.1 (2019): e0210746. (link)