No Brasil, o papel dos órgãos de controle, notadamente os Tribunais de Contas, tem se orientado pelo controle de conformidade legal (compliance). Em países de tradição anglo-saxônica, como nos EUA, o controle vai além da conformidade, avaliando também o desempenho e a relação custo-benefício da política pública.
Em nossa tradição legal, é difícil conciliar controle de legalidade e inovação. De um lado, é da natureza da inovação a falha, experimentação e aprendizado. De outro, o controle de legalidade típico é rígido, pouco flexível diante de imprevistos e não lida muito bem com falhas. Há quem diga que o excesso de controle tem levado a um “apagão da caneta”, isto é, gestores que não querem tomar decisões, pela insegurança jurídica e risco de serem punidos.
A própria modificação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) [1], feita em 2018, teve como objetivo alterar como órgãos de controle decidem, para que levassem em conta as consequências econômicas de suas decisões, bem como regulamentações novas para resguardar o gestor público, entre outros.
No dia 16 de julho, tivemos um caso ilustrativo dos dilemas entre controle e atividade produtiva. O jornal Estado de São Paulo publicou matéria sobre suspensão de contratos de Parceria para Desenvolvimento Produtivo (PDP) [2] para produção de 18 remédios e uma vacina, colocando em risco o acesso de pacientes a esses medicamentos. Em nota publicada após a matéria, o Ministério da Saúde (MS) afirmou que em várias das suspensões dos contratos ele seguia recomendações dos órgãos de controle (CGU e TCU).
O teor da matéria é de alarme, pela possibilidade de faltarem medicamentos, bem como pelo impacto na cadeia produtiva nacional. Outras matérias, em meses anteriores, já traziam relato de falta de medicamentos. Mas afinal, é correta a medida de suspender os contratos? Há justificativa razoável dos órgãos de controle para essas recomendações? Qual é o interesse maior da sociedade? Essa discussão é complexa e revela os dilemas enfrentados pela administração pública brasileira quando se trata de inovação e controle.
O caso de um medicamento para câncer de mama
Para entendermos melhor esse dilema, quero entrar em detalhes de um dos casos mencionados na matéria, que é do medicamento Trastuzumabe [3]. A história da produção e uso desse medicamento no Brasil ilustra bem alguns dos desafios do setor público brasileiro na execução de políticas públicas de primeira importância, como a saúde coletiva.
O Trastuzumabe é um medicamento muito importante para um tipo específico de câncer de mama. Assim, em 2013 o Brasil passou a fornecer esse medicamento pelo SUS, por meio de importação, mas apenas para mulheres com câncer em estágio inicial ou localmente avançado – não fornecia para mulheres com metástase. Como a empresa Roche detém a patente do medicamento, ela era a única fornecedora, com contrato mediante dispensa de licitação para o MS. O medicamento (na versão de 150 mg) foi adquirido a um preço médio de pouco mais de mil reais em compras centralizadas pelo SUS (R$ 1.020,00 em 2015).
E aqui começam as complicações. Como o SUS não fornecia o medicamento para mulheres com metástase – caso em que ele é indicado – muitas mulheres obtinham o direito ao medicamento via Justiça. Como resultado, compras avulsas e descentralizadas ocorreram, a custos unitários muito maiores. Em 2016, o Ministério Público Federal entrou com ação para devolução de recursos ao erário contra a Roche, por prática abusiva de preços – vendeu esse medicamento por preços até 300% mais caro que nas compras realizadas pelo SUS.
Em paralelo, o governo federal, preocupado com os custos crescentes dos medicamentos, criou as Parcerias para Desenvolvimento Produtivo (PDP) para fomentar a produção nacional de medicamentos considerados prioritários por laboratórios estatais. Uma dessas parcerias foi com o TecPar, um laboratório no Paraná – reduto eleitoral do ex-ministro da Saúde, Ricardo Paes de Barros. O Instituto passou a produzir o Trastuzumabe com transferência de tecnologia da Roche.
A compra do medicamento no seio da PDP se deu com dispensa de licitação e o preço praticado foi superior à última compra feita pelo governo com a Roche, quando ela era única fornecedora (portanto, também sob dispensa de licitação). No começo de 2018, em trabalho de rotina, os auditores do TCU identificaram uma nota de empenho de R$ 222 milhões para aquisição do Trastuzumabe 150mg junto ao laboratório Tecpar, com custo unitário de R$ 1.293,10.
Quais as medidas tomadas pelo órgão de controle?
Preocupados com potencial desabastecimento, o TCU solicitou ao Instituto Butantã que informasse a capacidade de fornecer o medicamento, caso o contrato com o Tecpar fosse suspenso. A resposta do Instituto foi que não tinha essa capacidade, embora no início de 2018 o mesmo Instituto tenha dito ao MS que tinha capacidade de suprir a demanda total.
Após encontrar várias irregularidades formais no processo de constituição da PDP com a Tecpar para a produção do Trastuzumabe, como preço mais caro que a última compra feita e explicações que considerou insuficientes, o TCU determinou suspensão do contrato, porém aceitando finalizar as compras já empenhadas (ao preço de R$ 938,90, valor máximo previsto na PDP), para evitar risco de desabastecimento – que o órgão não conseguiu apurar se era real, por falta de informações fáceis sobre estoque de medicamentos nos estados e municípios.
Como resultado, em 2019, o MS fez nova licitação para compra do medicamento e evitar desabastecimento, que teve a Roche como vencedora, por preço menor que da última compra (R$ 894,34), segundo registrado na ata de preços.
E, ficamos sabendo agora por meio das matérias nos jornais, o MS está suspendendo os contratos com os laboratórios, que já fizeram investimentos para transferência de tecnologia e estavam prontos para produzir o medicamento, ainda que com preços mais caros que da Roche.
E, com todo esse trabalho dos órgãos de controle, não é possível avaliar a eficácia da PDP, nem saber se esses custos maiores são uma decorrência normal de investimentos que precisam ser amortizados. Igualmente, não há avaliação se a produção nacional já está baixando o preço da Roche por ameaça de competição futura, ou se no futuro a Tecpar seria capaz de gerar de fato economia ao país.
Em resumo, os órgãos de controle fizeram avaliação de conformidade, pesaram as consequências da decisão cautelar e ponderaram a economicidade da medida. Mas não conseguiremos apreender a efetividade da PDP, que é uma política de longo prazo e cujos resultados demoram para serem observados. Não saberemos se os gastos futuros com compras de medicamentos poderiam ser reduzidos no longo prazo, ampliando portanto a capacidade do SUS de bem executar essa política. Por isso seria melhor ter órgãos de controle preocupados não apenas com conformidade, mas também com avaliação de custo-benefício, o que em inglês se chama de value for money, ou retorno pelo dinheiro investido.
Manoel Galdino
Diretor-executivo da Transparência Brasil
[1] O que é a LINDB?
Sancionada em 25 de abril de 2018 pelo presidente Michel Temer, a Lei 13.665/2018 alterou a Decreto-Lei 4.657/42, conhecida como Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). Foi uma lei concebida originalmente para regular a aplicação do Código Civil. Por ser um diploma independente, não é mais considerada parte do Código Civil, e regulamenta todos os demais ramos do direito, determinando como as leis devem ser aplicadas. É às vezes chamada, portanto, de “normas das normas”.
[2]O que é o PDP?
As Parcerias para Desenvolvimento Produtivo (PDP) são uma iniciativa do Ministério da Saúde para viabilizar a transferência de tecnologia de empresas do setor privado – em geral, multinacionais – para laboratórios públicos, de forma a viabilizar a produção por estes de medicamentos e vacinas estratégicos para o SUS. O governo brasileiro se compromete a comprar os medicamentos das empresas privadas, e em troca elas aceitam fazer a transferência de tecnologia. Ao final do acordo, os laboratórios públicos passam a produzir o medicamento.
[3]O que é o Trastuzumabe?
Câncer de mama pode ser de vários tipos e, para cada tipo, há medicamentos específicos que são mais eficazes. Vendido sob o nome comercial de Herceptin, é destinado aos cânceres de mama que são positivos para um receptor chamado HER2. Ele age inibindo a ação genética defeituosa do HER2 em tumores. De acordo com o Instituto Nacional do Câncer, cerca de 20% dos 57 mil novos casos anuais de câncer de mama são HER2-positivo.