[Coluna 17] A importância do COAF no combate à lavagem de dinheiro

O Supremo Tribunal Federal está para decidir, no Recurso Extraordinário n° 1.055.941/SP, sobre a constitucionalidade de a Receita Federal e o antigo COAF¹ poderem compartilhar informações com órgãos como Ministério Público e polícia. E isso pode representar um grande retrocesso no combate ao crime irmão da grande corrupção: a lavagem de dinheiro.

É no combate à lavagem de dinheiro que o Brasil mais avançou nos últimos anos. Avanço esse que vem sendo desmontado em menos de um ano de governo, sem que tenha sido discutido durante as eleições.

Lavagem de dinheiro e corrupção

A lavagem de dinheiro é o processo pelo qual dinheiro oriundo de atividades ilícitas é transformado em recursos de origem aparentemente lícita. Quando alguém recebe dinheiro de atividade criminosa em papel moeda, este deixa menos registros do que uma transferência bancária e muitas vezes não precisa de lavagem de dinheiro. No entanto, ao ser usado na economia formal, esse recurso entrará no sistema financeiro e poderá levantar suspeitas sobre sua origem, se o montante for incompatível com a renda formal do indivíduo, por exemplo. Por essa razão, a lavagem de dinheiro é importante para viabilizar o usufruto pelo criminoso do dinheiro ganho ilegalmente.

Por que a lavagem de dinheiro está inextricavelmente ligada à corrupção? Para uma empresa ou empresário pagar propina, é preciso dinheiro da empresa ou de sua conta pessoal. No mundo atual, usa-se o sistema bancário para guardar e movimentar altas somas financeiras, o que implica em deixar rastros.

Assim, a propina paga com recursos da conta da empresa ou da pessoa física deixará rastro. Se tanto corruptor, quanto corrupto estiverem movimentando recursos acima do que suas atividades legais justificam, o banco será obrigado a informar ao COAF (agora UIF), que foi criado pela Lei de Lavagem de Dinheiro (nº 9.613 de 1998). O mesmo vale para empresas que lidam com atividades comumente utilizadas para lavagem de dinheiro, como obras de arte e jóias.

Desde os atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA, há um grande esforço internacional para reforçar o combate à lavagem de dinheiro, que é associada a práticas como terrorismo. O Brasil, nesse sentido, aderiu a vários tratados e órgãos internacionais que contemplam ou são voltados para o combate à lavagem de dinheiro, tais como: tratados de Mérida – decreto nº 5.687/2006; Palermo – decreto n.º 5.015/2004 e Nova York – decreto nº 5.640/2005, além de ter aderido ao Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), que contém várias recomendações sobre funcionamento de unidades de inteligência financeira como o antigo COAF.

Como resultado, até o ano passado o Brasil seguia o padrão internacional recomendado das práticas de combate à lavagem de dinheiro.


O caso dos EUA

Como acontece nos EUA, por exemplo? Lá, o equivalente ao COAF é o Financial Crimes Enforcement Network (FinCEN). Eles não são uma agência de inteligência, pois não investigam crimes. Seu objetivo é regular e coletar informações que possam estar associadas à lavagem de dinheiro, além de analisar dados para repassar a autoridades caso haja algo suspeito.

De acordo com o FinCEN, em 2018 mais de 2 milhões de informes de atividades suspeitas foram reportados nos EUA. Agentes da lei ao redor dos EUA podem acessar esses dados, bem como os analistas do FinCEn, que fazem análises de inteligência para descobrir potenciais crimes e ajudar a iniciar investigações ou resolver as já em andamento. De acordo com o diretor do FinCEN, em 2018 20% de todas as investigações do FBI utilizaram dados do FinCEN, e para crimes organizados, chegaram a quase 60%.

Além disso, agentes da lei federais ou estaduais podem solicitar informações ao FinCEN quando precisam de mais informação relacionadas à lavagem de dinheiro sobre um suspeito ou atividade suspeita. Quem solicita a informação deve declarar que existe evidência de lavagem de dinheiro, que houve checagens de que não há abuso, entre outros requerimentos, incluindo declarações que outras formas de chegar ao crime ou criminosos foram tentados e exauridos, sem resultado. Essas informações não podem ser detalhadas demais sem mandato judicial, para preservar a privacidade. Resumem-se ao que a FinCEN chama de lead information, isto é, informação que leva a mais resultados.


Como funciona a UIF

O antigo COAF, agora Unidade de Inteligência Financeira, funciona de modo similar ao seu equivalente norte-americano. De acordo com dados do relatório de atividades do então COAF de 2018, o órgão recebeu aproximadamente 3,1 milhões de comunicações de atividades suspeitas. Desses 3,1 milhões, 2,7 milhões (87%) foram operações em espécie.

Isso levou à análise por parte do órgão de 330.895 mil comunicações de operações financeiras, como parte dos 7.345 Relatórios de Inteligência Financeira (RIF). Nos EUA, a mecânica é um pouco diferente, já que outros órgãos podem consultar a base de dados diretamente, e chegaram a mais de 10 milhões de buscas nos últimos cinco anos.

O modus operandi da UIF, de maneira geral, é similar à sua contraparte norte-americana. Os dados reportados pelas instituições obrigadas são analisados e, quando há alguma suspeita de crime, são enviados para que a autoridade competente possa investigar o que foi levantado.

Nos EUA, conforme mencionado, já há inclusive uma sistemática para que as demais autoridades consultem informações sobre potenciais criminosos na base de dados da agência de inteligência financeira. Eles, porém, não podem ter acesso a documentos comprobatórios (de bancos, por exemplo), sem o devido mandado judicial. Isso significa que o nível de compartilhamento de dados é ainda maior que aqui, já que não há esse nível de consulta direta ao sistema por agentes de polícia estadual, por exemplo.


Impacto da inconstitucionalidade da troca de informações

Se o STF decidir pela inconstitucionalidade da troca de informações, ou mesmo decidir que apenas informações genéricas e limitadas podem ser trocadas sem mandado judicial, o combate à corrupção sofrerá um grande retrocesso.

O volume de dados e informações cairá sensivelmente e, em vez de facilitar a troca de informações que está na raiz de um combate efetivo ao crime, estaremos dificultando esse processo.

A preocupação com privacidade é importante e merece atenção. Mas, ao analisar as melhores práticas mundo afora, como no caso dos EUA, o que vemos é que em vez de se impedir a comunicação, esta é facilitada, mas é exigido que se justifique amplamente o acesso a esses dados. Se um dado for acessado de forma injustificada, o servidor público pode ser punido, além de invalidar a prova obtida por este meio.

Assim, reforçar o devido processo legal é importante, para resguardar o cidadão de abusos autoritários do estado. Fortalecer a troca de informações é o caminho para que se possa fazer justiça e impedir crimes como a corrupção. Um deve reforçar o outro, e não atrapalhar, como parece pretender o presidente do STF, ministro Dias Toffoli.


Manoel Galdino
Diretor-executivo da Transparência Brasil

[1] COAF
é sigla para Conselho de Controle de Atividades Financeiras,e estava vinculado ao Ministério da Economia. Mudou de nome para Unidade de Inteligência Financeira e encontra-se agora vinculado ao Banco Central do Brasil.