A autonomia universitária, consagrada pelo artigo 207 da Constituição Federal, é uma conquista da sociedade e da comunidade acadêmica. Contudo, as universidades públicas paulistas têm usado esse dispositivo legal para reduzir a transparência e dificultar o acesso a informação.
Infelizmente, o estado de São Paulo tem legitimado esse comportamento anti-republicano da USP, Unesp e Unicamp. Em vez de exigir mais transparência, o governo simplesmente acatou o argumento das universidades, por meio de um parecer emitido pela Procuradoria Geral do Estado em 2016.
Histórico de opacidade
De acordo com reportagem do Estadão e levantamento da agência Fiquem Sabendo, a Unesp manteve uma série de bolsistas “ocultos” entre 2014 e 2016. A Fundação para o Desenvolvimento da Unesp (Fundunesp) os financiava, mas não publicava sua remuneração e nem mesmo o conteúdo das pesquisas realizadas – um cenário de clara ausência de transparência e prestação de contas.
Em outro levantamento, a Fiquem Sabendo revelou que a USP leva uma média de 253 dias para responder a um pedido via LAI – e há pedidos que chegaram a ficar três anos sem resposta.
Em 2016, sob o argumento da autonomia universitária, essas universidades saíram do Serviço de Informação ao Cidadão do estado de São Paulo (SIC-SP) e decidiram não se sujeitar mais às instâncias recursais do Executivo Estadual, como a Ouvidoria Geral do Estado (OGE-SP) e a Comissão Estadual de Acesso à Informação (CEAI) – segunda e terceira instâncias recursais da LAI no estado de São Paulo, respectivamente. Tudo isso foi recebido com passividade pelo governo estadual, e os cidadãos permanecem sem saber a quem essas universidades prestam contas. Até que ponto a autonomia universitária justifica essa política de opacidade?
Autonomia de ser opaco
Como um dos representantes da sociedade civil no Conselho de Transparência da Administração Pública do estado de São Paulo, levantei a questão do cumprimento da LAI pelas universidades paulistas, durante a 81ª reunião do Conselho. Como foi informado em reuniões subsequentes, por interpretação legal da Procuradoria Geral do Estado (PGE), o governo do estado acatou o argumento das universidades de que a autonomia universitária implicaria que elas não precisam seguir a regulamentação da LAI do Executivo estadual paulista.
O artigo 207 da Constituição Federal estabeleceu a autonomia universitária como parte integrante do ordenamento constitucional. Com base nesse artigo, as universidades paulistas têm interpretado que não precisam cumprir o decreto estadual nº 58.052/2012, que regulamenta a LAI no estado. Na prática, isso tem significado descumprir a LAI sem maiores consequências, conforme os exemplos listados, reconhecidos pela OGE-SP e documentados em parecer da PGE-SP sobre o tema ¹.
Na portaria de 2019² que regulamenta o cumprimento da LAI, a USP instituiu como sua última instância recursal o reitor da universidade. Como um cidadão poderá exercer controle social sobre o reitor – ou sobre a reitoria – se ele próprio é a última instância e dá a última palavra sozinho? É ponto pacífico nas boas práticas para o acesso a informação que a última instância recursal seja um órgão colegiado, e que o chefe do órgão ou poder em questão não faça parte dele. Assim, o Presidente da República não é ele próprio instância recursal da LAI no Executivo federal, nem o governador do estado, no nível estadual.
Essas escolhas implicam muitos outros pontos questionáveis. Qual ganho teria a universidade em instituir um SIC próprio, replicando gastos já incorridos pelo Estado de São Paulo? E por que não cumprir as determinações da OGE e da Comissão Estadual de Acesso à Informação (CEAI, terceira instância recursal no estado de São Paulo), caso seu interesse fosse verdadeiramente a garantia da transparência?
Ora, é evidente que o objetivo das universidades é controlar, internamente, quais informações serão ou não disponibilizadas ao público. Já em 2013 a USP tentou, de todas as formas possíveis, não divulgar dados dos salários dos servidores, franqueando o acesso apenas em 2014, após decisão judicial em segunda instância favorável ao jornal Folha de São Paulo.
Ausência de fundamentos legais
Examinando os fundamentos legais dessa interpretação restritiva dada pela PGE, observamos buracos argumentativos graves. Primeiramente, consideremos a jurisprudência das universidades federais. Gozam da mesma autonomia universitária, mas não utilizam essa prerrogativa como desculpa para não se submeterem à regulamentação da LAI do Executivo federal e às decisões da CGU.
As universidades paulistas recebem recursos públicos. Recusar-se a prestar contas – que é o que fazem, na prática – é contrariar os princípios da moralidade e publicidade na administração pública. O parecer da Procuradoria Geral do Estado, que embasa legalmente esta interpretação, em nenhum momento discutiu qual razão fundamenta uma interpretação diferente do mesmo dispositivo constitucional no caso das universidades federais.
É verdade que a PGE menciona o decreto estadual nº 61.175/2015, que regulamenta as competências da OGE. Segundo a norma, as obrigações da OGE não se aplicam às ouvidorias das universidades, de forma que se justificaria as universidades não cumprirem as determinações da segunda instância recursal da LAI em São Paulo. Porém, nada é dito sobre a CEAI, última instância recursal e sobre a qual não se aplica a restrição apontada acima.
Não estou convencido de que haja fundamento legal para essa postura pouco transparente. Mais ainda, não é eticamente correto que se defenda a falta de compromisso com a transparência das universidades públicas paulistas, que é o resultado prático dessa interpretação legal ora prevalecente no estado de São Paulo. É hora da Procuradoria Geral do Estado revisitar seu parecer e mudar o entendimento que permite às universidades paulistas não serem transparentes.
Manoel Galdino
Diretor-executivo da Transparência Brasil
[1] Conforme documenta parecer da PGE, de 2016,
a OGE afirmou “encontrar dificuldade em cumprir suas atribuições, relacionadas à Lei de Acesso à Informação, no que toca às Universidades estaduais citadas, o que decorre em prejuízo aos cidadãos” .
[2] A portaria que regulamenta a LAI na USP é de abril de 2019. Contudo, desde 2016, pelo menos, a universidade já não aceitava cumprir as determinações do decreto estadual regulamentando a matéria.