[Coluna 21] Limites da autodeterminação informativa na era da economia da vigilância

As organizações da sociedade civil que participaram do processo de aprovação da Lei nº 13.709/2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), ficaram, em geral, satisfeitas com o texto aprovado. Especialmente porque ela incorporou um princípio, presente na lei de proteção de dados da União Europeia, que é a autodeterminação informativa.

Esse princípio diz, grosso modo, que toda pessoa tem o direito de controlar o que fazem com seus dados. O problema é que vivemos na economia da vigilância. Nessa economia, nosso comportamento é transformado em dados.

Economia pré-vigilância

A estatística moderna surge como uma ferramenta do estado para catalogar dados básicos sobre um país. A própria etimologia do nome, do alemão Staatskunde, refere-se ao estado, pois em sua origem tratava-se de coletar informações demográficas para estados soberanos. Ruas numeradas de forma ordenada, por exemplo, foram impostas em Paris apenas em 1805, por ordem de Napoleão. A necessidade de instituir registros surge como ferramenta estatal para atingir seus fins, como a cobrança de impostos.

Na era analógica, dados referiam-se, portanto, a características demográficas e, a partir do século XX, a alguns outros aspectos da vida, como economia, política, entre outros. No Reino Unido, até meados do século XIX, havia registros de como cada pessoa votou (em quem votou), já que o voto não era secreto. Comportamentos cotidianos e repetitivos, contudo, não eram objeto de registro sistemático e, portanto, não se transformavam em dados.

Até o advento da era digital, não era possível registrar quais músicas ouvíamos, o que cozinhávamos, quantos alimentos tínhamos estocados, quantas horas de sono dormíamos, nossos batimentos cardíacos a cada segundo, enfim, aquilo mesmo que define nosso estar no mundo.


Economia da vigilância

Nos dias atuais, contudo, nosso viver é transformado em dado. Na economia da vigilância, nossas atividades diárias são rastreadas e registradas por sistemas automatizados. Novas tecnologias prometem registrar todos os nossos momentos, desde nosso sono, ao que comemos, passando por sinais vitais e expressões faciais. Muitas empresas baseiam crescentemente seu modelo de negócio na coleta, armazenamento, análise e mercantilização desses dados.

Ocorre que, à medida em que a economia passa a depender cada vez mais de dados e esses dados passam a ser mais valiosos – tornou-se lugar comum dizer que dado é o petróleo do século XXI –, cabe o questionamento: o que significa a autodeterminação informativa nesse contexto?

Autodeterminação informativa na economia da vigilância

A vigilância é tão crescente e pervasiva que não é possível que cada um de nós fique soberanamente decidindo, de maneira informada, se cada ato individual de nossa existência deve ou não transformar-se em dado. Cada vez que eu entrar em uma padaria, devo perguntar pelos termos da câmera de segurança? Ler minuciosamente os termos de uso de cada aplicativo do celular? Quando visitar um familiar, poderia determinar que um aparelho não grave minha voz?

O próprio uso de serviços e tecnologias por poucos fornecedores, todos com modelos de negócios baseados na economia da vigilância, tornam um falso senso de escolha a opção de não fornecer nossos dados para as empresas. É possível rejeitar os termos e condições das empresas que vendem aparelhos de celular e negociar outro tipo de coleta de dados? É possível usar uma rede social negociando os termos de uso dos dados individualmente? Para impedir que as empresas rastreiem nossos dados, temos de viver ou como criminosos, ou como eremitas.

A autodeterminação informativa pressupõe que não vivemos em um estado contínuo de coleta de dados a partir de nosso comportamento, mas que cedemos nossos dados pessoais por uma série de atos de vontade consciente e informada.

Por essa razão, enquanto a coleta de dados for central para o modelo de negócios do mundo digital, a noção de autodeterminação informativa deixa de fazer sentido. Uma lei que estabelece como objetivo algo que, se fosse seguido rigorosamente, inviabilizaria boa parte da parte dinâmica da economia é uma lei que não será cumprida.

Dessa maneira, avalio que parte da LGPD irá falhar, porque ela não enfrenta o problema central: a economia da vigilância. É remar contra a maré. Isso não quer dizer que não haja partes dessa legislação que serão importantes. Só não podemos nos surpreender quando a lei enfrentar esses problemas no curso de sua implementação e, como muitas outras leis, “não pegar”.


Manoel Galdino
Diretor-executivo da Transparência Brasil